domingo, julho 25, 2004

TODO DIA É DIA DE NATAL - Conto

O dia inteiro de caminhada nas subidas e descidas do trajeto de  cinco léguas de Ermida dos Campos à Divinópolis. José e Maria, Maria e José, os dois, lado a lado no ritmo intermitente e moroso das subidas e no persistente e apressado das descidas e baixadas. As horas passavam nas posições do sol, ora na frente deles, ora dos lados, até fixar-se no centro do céu, mais quente na cabeça do que nos pés. Depois de uma rápida parada para a matula, na sombra da árvore dos óleos, eles recomeçam a andança, refeitos de ânimo. Esperam chegar à cidade antes do anoitecer, a tempo de encontrarem um pouso decente numa pensão barata, que escolheriam pela aparência, antes de contratarem. Descansariam a noite para reencetarem viagem, ainda à pé , logo de manhã, até o Arraial do Desterro, terra natal deles, onde esperam obter dos parentes a boa acolhida para propiciar à Maria um parto feliz do primogênito, que enchia seu ventre e sinalizava com apalpadelas e empurrões internos o desejo e a necessidade de vir à luz. - O nosso Jesuzinho está chutando muito?, ele pergunta à mulher, limpando o suor do rosto e trocando de ombros o saco de roupas e os bornais de objeto de uso pessoal e alguns artifícios de madeira que burilou em sua pequena oficina para presentear os parentes e amigos do Desterro: uma imagem de Cristo de dois palmos de diâmetro, esculpida num toco de pequi; um carrinho de bois, miniaturado; meia-dúzia de piões e piorras e muitas colheres de pau e consolos para coar café. - Ele agora sossegou um muncado, coitadinho, - ela responde. - E a enjoação do estômago embrulhado? - Graças à  Deus, passou. Foi só de manhã, quando começamos andar. - Tudo bem então, né? Quando quiser parar um pouco para descansar, é só dizer. - Carece não, Zé. O meninozinho está tão perto que arreceio dele querer sair de mim antes do prazo combinado. E estrada pedregosa castiga os pés de José, dentro da velha botina gomeira e os de Maria, inchados dentro da velha sandália de fitas. Os sulcos dos carros de bois e os cascos dos animais misturavam-se na terra salpicada de ramos rasteiros aos rastros levíssimos dos pássaros, cobras e lagartixas. Durante o longo percurso, eles conseguiram carona duas vezes, em carros de bois, em um deles levando rapaduras de uma fazenda a uma venda de beira de estrada e outro conduzindo milho em palha de uma roça a uma fazenda na matinha dos juncos. O sol já estava morrendo no horizonte das costas deles, quando avistaram o profuso e vivíssimo casario da cidade do Divino. Quando viram, de longe, a torre do Santuário, pararam, persignaram e rezaram. Escurecia quando entraram na rua comprida que dá acesso ao centro da cidade. Prestavam atenção nas casas, na esperança de verem as tabuletas indicativas de pensões familiares. Andaram dezenas de quarteirões iluminados por lâmpadas pendentes de braços da tosca posteação de aroeira do sertão. As pessoas transitavam as artérias públicas, no meio de alguns barulhentos automóveis, silenciosas carroças, no meio de cães, cabritos e montes de pedras. - É bom perguntar a quem sabe, Zé, - ela disse, encostando-se um pouco num muro de terreno baldio. José, debaixo do poste, lia no pensamento as palavras de Jeremias: “O Senhor vai castigar os pastores que não tomaram conta de suas ovelhas. Ele reunirá as que não se dispersaram e as fará voltar a seus campos, onde se reproduzirão e multiplicarão. E na boa onda dos novos dias o Senhor fará nascer um descendente de David, que reinará na sabedoria, na justiça e na retidão de toda a terra abençoada”. Mas alertado pelas palavras de Maria, ele abordou o primeiro passante, um homem alto, barrigudo e bundudo, de calva adentrada no alto da cabeça e uma barba negra, cerrada. - O senhor pode me dizer onde fica a pensão mais perto daqui? O homem estacou, reparou bem no casal, coçou a barba e o saco, aproximou-se para saber de mais detalhes: quem eram, de onde vinham, o que queriam na cidade, para onde iam depois. José, de boa vontade, deu as informações. - Antes de mais nada vocês precisam de uma boa acomodação, onde possam tomar banho, comer e dormir. Amanhã vocês pegam o trem que passa no Desterro. À pé vocês não vão, nem ver. É loucura fazerem outra caminhada de cinco léguas, estando ela no estado em que está. - Mas não queria desinteirar o dinheiro do parto e do resguardo dela, lá no Desterro. - Isso veremos, - diz o homem careca e barbudo. “Vamos atravessar a rua. Do outro lado tem uma pracinha com bancos de cimento, onde poderão descansar, enquanto conversamos”. E conversaram por mais de meia-hora. Ficou combinado que o homem iria  à pensão mais próxima, para reservar a vaga do pernoite e de lá iria à estação ferroviária comprar as passagens para a viagem no trem de ferro da manhã seguinte. - Você está me dando um conto de réis, em dez notas de cem... - É todo o dinheiro que consegui juntar nos nove meses da gravidez dela..., disse o José, constrangido e apreensivo, vendo o maço de notas nas mãos do barbudo. - Vou levar comigo para prevenir um contratempo. O senhor não pode ficar com tanto dinheiro dando sopa, sem saber que cada pessoa que passa para lá e para cá é um ladrão em  potencial. - Mas quanto o senhor acha que vai precisar para as despesas? _ Nem um décimo deste total, - o careca diz, embolsando o maço e levantando-se do banco. “Dentro de meia-hora, no mais tardar um pouco mais, estarei aqui com o recibo da pensão e as passagens do trem”. - Mas como o senhor chama?, pergunta Maria, preocupada com o desembaraço do homem e a desconfiança do marido. - Meu nome é Judas, - ele disse, já um pouco distante, prestes a embrenhar-se nas sombras da rua noturna. Maria achou o nome esquisito, mas abanou os pensamentos que queriam entrar em sua cabeça. José cabeceava um pouco, despojado no assento e encosto do banco; o nascituro da mulher fazia o mesmo dentro de seu ventre remansoso. Ela então aproveitou para reativar os fiapos de um salmo responsorial em sua adocicada memória: “Se o senhor é o pastar que me conduz, nada me faltará. Sei que me guia nos caminhos mais seguros, pelos prados e campinas verdejantes, em nome da honra de seu nome. Para as águas repousantes, ele me encaminha, enquanto restaura minhas forças. Assim há de ser. Mesmo que eu passe pelo vale tenebroso, nenhum mal hei de temer, pois com os óleos benfazejos ele ungirá minha cabeça, enquanto o cálice de meu esposo transbordará no caminho da felicidade de nossa vida”. Três horas depois, eles perguntaram a um outro passante se não tinha vista um homem alto e barrigudo, de barba negra e reluzente, chamado Judas. O passante depois de ouvir a estória, gargalhou e disse: : “Vocês caíram no conto do vigário! Vocês são mesmo uns capiaus da roça, hein?”. Desnorteados e desenxabidos, saíram pela noite e pelas ruas, a procurar, primeiro o tal de Judas e depois uma hospedaria que pudesse acolhê-los. Bateram nas portas de todas as pensões familiares que encontraram, mas nenhuma quis hospedá-los, já que não dispunham do dinheiro para o pagamento antecipado. Maria já não agüentava de tanta canseira e cismava que a bolsa do nenen ia rebentar antes da hora, dentro de si. Amargando e chorando a desdita, foram parar na fila da previdência social, quando já passava da meia-noite. A fila dobrava o quarteirão, eles entraram na rabeira, na frente de outras pessoas que chegavam sem parar, de forma que, em pouco tempo,  ela já dobrava o outro quarteirão. José forrou o passeio com uma toalha, sentou-se, deixando espaço para Maria deitar-se, espichando o corpo e encostando a cabeça no colo dele. Depois, um dos associados da previdência, vendo-a gemer naquele estado, condoeu-se, foi até a vanguarda da fila, rogando uma troca de lugares, a fim de que fosse atendida entre os primeiros, ao amanhecer. Conseguiu um adiantamento de alguns filantes, mas depois, diante do agravamento do estado dela, outro pensionista conseguiu passar na frente de mais alguns filantes e por fim, quando já estava clareando, os primeiros da fila, que mostravam irredutíveis em seus lugares, arredaram de suas posições, deixando que  a pobre roceira grávida tomasse o primeiro lugar. José não sabia o que fazer de suas preocupações. O filho ia nascer naquela cidade? em casa de quem? na santa casa de misericórdia, através da ficha da previdência? E depois, como fariam para seguir viagem até Desterro, sem um tostão no bolso? Assim pensando tirou da sacola a imagem de Jesus Crucificado e ficou a olhá-la. O toco de pequi, em forma de coração, a figura maltratada do Filho de Deus pregado na cruz, parcialmente despido, os cabelos compridos sobre o pescoço, as pernas dobradas para que os pés pudesses ser jungidos ao madeiro no furo de um só prego; os braços estendidos, musculosos e sensuais; o rosto perturbado no transe da paixão pelo destino redentor, na contradição da extrema dor física das fincadas e macerações da judiação carnal. - Que imagem bonita!, - um filante exclamou. “Quanto quer por ela?” José, espantado diante da admiração daquele filante e dos outros, que se debruçavam para ver a imagem, respondeu: - Esta imagem é um presente que vou levar à minha mãe. Não é de vender! Depois de quase uma eternidade na espera, a portinhola do guichê abre, e a fisionomia cansada do atendente assoma, impaciente, exigindo a documentação de José. - Documentação? Qual documento?, diz o carpinteiro dos arrabaldes de Ermida dos Campos. - Está fazendo hora com minha cara? Cadê a carteira de trabalho? - A carteira? A mulher sofrendo as dores do parto não serve? O atendente bilioso faz um sinal violento, exigindo que ele dê o  lugar na fila ao que está logo atrás. Ao sair da fila, Maria desfalece e é carregado por José até o canto do muro, onde ele a envolve em panos tirados da sacola, abaixando ao mesmo tempo a roupa íntima dela, já  toda molhada. E como se fosse um médico escolado e experiente, ele mesmo ajuda a mulher nas contrações e puxa, jeitosamente, o nenen chorão para resguardá-lo numa infinidade de panos que retira da sacola, para depois cortar o cordão umbilical com a lâmina bem amolada do canivete de cabo de osso. Sentindo que tudo deu certo, ele ri em si e olha para a apaziguada Maria, que lhe pergunta: “Ele nasceu direitinho? não está faltando nada nele?”