segunda-feira, agosto 29, 2005

43 - O VOCABULÁRIO DAS ESFERAS

Beethoven compunha através de palavras?, pergunta
Thomas Mann
Ele o fazia no delírio da sofreguidão
na mansuetude das pausas interligantes
na contundência da gritante surdez
No meio das palavras profusas as
parcas notas nas linhas gráficas
o acompanhamento pianístico
a sonata para violoncelo em lá menor
as combinações tonais, os arranjos
ainda incriados pela humana verve
as palavras ao toque e no sopro espontâneo
a sonoridade paisagística das serras e vales
jardins e quintais da comunhão dos bens
a fuga dos temas no quinteto de cordas
o coro a seis ou oito vozes
a pintura a caligrafia orquestral
o anjo a dissertar, aceitar os pecados
o viés e o revés lado a lado
a escala cromática os solfejos os movimentos
a harmonia cósmica de Pitágoras agora
desfolhada em consecutivas orações e impropérios
conciliadas e repentinas orações e impropérios
as faíscas a bafejar as têmporas a chamuscar
os cabelos de apressadas cores
as vozes entrelaçadas dos bemóis e sustenidos
os acordes e acordos solos e duetos
(no vai e vem do eu tu ele o mundo)
o avanço solitário do trombone de vara
na rua da mais escura solidão
o azougue de chofre na retumbância do abandono
os ditongos as exclamações as reticências
a prosa enfim rimada e metrificada
na frase maior que a pauta
os enfeites do quarto de dormir e de acordar
lá onde paira de vez em quando
o empíreo a reproduzir-se vagamente
lá onde a parte do insondável adentra
mais e mais
nas confluências instrumentais dos traços caligráficos
das penas molhadas no coração e no cérebro
do fulminado e fulminante Ludwig van Beethoven
uma águia olhando para o sol de William Shakespeare
ali e agora onde
a luz dança na cor que se amontoa em outras cores
de Francisco de Goya y Lucientes
- é o ardor o embargo a íntima ovação
Do estatelado colhedor.