sábado, agosto 20, 2005

BANHO DE CIVILIZAÇÃO (*)

Voltei de São Paulo com as mãos doendo de tanto bater palmas nos sucessivos espetáculos públicos da melhor qualidade artística possível. Também não é para menos. São Paulo é a quarta maior cidade do mundo e possui uma estrutura de funcionalidade urbana exemplar, apesar do número excessivo de veículos motorizados, que tira a liberdade de locomoção dos pedestres. Ruas e avenidas bem projetadas e construídas, limpas e bem cuidadas e por assim dizer humanizadas, pois cercadas de arborização, áreas livres, passeios espaçosos, tudo beneficiado pela competente infra-estrutura respeitada e secundada pelo carinho do auto-benefício dos moradores. Os prédios chegam a ser bonitos - e é um prazer quase festivo passeiar a pé ou de carro pelas ruas e bairros da zona sul e adjacências (Jardins, Moema, Itaim, Ibirapuera), dando-nos a confortável impressão de que estamos em casa. Mas o ponto alto (além dos restaurantes e casas noturnas de primeiro mundo, por assim dizer) é a programação cultural de todos os cantos e recantos metropolitanos, repletos de salas de leitura, teatros, museus, cinemas, auditórios, livrarias, e até os templos católicos onde a fé cristâ irmana-se à beleza dos cantos gregorianos (no Mosteiro de São Bento) e à Comunhão Reparadora dos Arautos dos Evangelhos (na Catedral da Sé). O afâ intelectual das pessoas mais exigentes é contemplada com o que há de mais fino e puro para deleitar a cupidez mental e enlevar a vulnerabilidade sensitiva. Ciceroniados pela filha Ana Paula, que desde a infância cultiva o interesse e o bom gosto da arte e da cultura, eu e Inês lavamos a alma diversas vezes no banho de civilização de uma cidade que no passar dos séculos mais se aprimora nas instituições, apesar dos percalços administrativos da política brasileira. O Concerto da Orquestra Sinfônica na Sala São Paulo, deixou perplexo e até acabrunhado, no bom sentido. A concorrência das partes - os instrumentos de sopro, de cordas e de percussão, escreviam em meus sentidos alertados os nomes de uma nova coleção antológica de poemas - e mesmo no escuro da platéia fui rabiscando em vâs tentativas de versificação as palavras que fluiam da execução do Concerto em Lá Menor de Schumann: a palavra que exorbita da partitura reluz na pauta e canta no solfejo grita nas claves, fere a grafia selecionada no silêncio promovido a som compulsivo os olhos nos ouvidos os ouvidos nos olhos a possessão dos sentidos no estar do ser no almejado inesquecível do amor de alguma coisa inexprimível que dá mais vida à vida que recolhe para entornar reflui para absorver transtorna para retornar ah! a malícia arraigada é uma delícia delineada e finalmente exposta na tramitação de uma idéia da alma agora na ponta dos dedos do pianista Vimos depois "O Fantasma da Ópera" no mesmo teatro que no ano passado vimos "Os Miseráveis", também um super-espetáculo de efeitos especiais e de recursos visuais inimagináveis por quem sempre via o palco imóvel diante de um pano de fundo sem vida própria. Ambas as encenações lembram ao cinéfilo de muitas décadas a surpresa antiga causada pelos artifícios do cinemascope e da terceira dimensão e da hoje chamada computação gráfica. Do começo ao fim do desenrolar, a peça é uma espécie de filme ao vivo e em cores, de montagem e decupagem instantâneas: o cenário abre, fecha,bifurca, expande, aprofunda, adquire aspectos e formatos dinâmicos, é às vezes ao mesmo tempo, um camarim da estrela, os bastidores dos figurantes, o fosso da orquestra, os escaninhos das intrigas, a alcova dos amantes, os jardins dos idilios, os tetos dos lustres macabros, os nichos de monstros e abismos. De tudo fica a impressão que a tecnologia é o personagem principal do enredo, é a diretriz, o conceito e a imagem, o formalismo e a trama romanesca. Algo que realmente impressiona, teatralmente, pela novidade. Outra atração irresistiível é a beleza verde e fulgurante do Parque Ibirapuera, com as repentinas longidões de seus gramados e arvoredos e pistas de caminhadas e ciclismo e os lagos, os quiosques, os monumentos arquitetônicos e sobretudo as alas e moitas de árvores assim apresentadas como os seres vivos que realmente são, produzindo o jogo fantástico dos reverberos de sombras e luzes nas amplas extensões de tanta recreação agraciada de clorofila e ares oxigenados. Vimos lá a inefável exposição Andy Warhol Motion Pictures no MAM (Museu de Arte Moderna), que eu conhecia de longe . Nela estão os ícones norte-americanos saidos de sua câmera de l6 mm na série de filmes mudos da década de 60: Sleep, Eat, Kiss, Blow Job, com algumas de suas mais lindas mulheres: Jane Holzer, Donyale Luna, Edie Sedgwich, Susan Sontag (quem diria que ela depois seria a grande intelectual de nosso tempo!), Cathy, Kyoko Kishida e Ivy Nicholson, todas primando suas qualidades encantatórias em simples expressões faciais em muitos minutos repetitivos o dia todo em telões espalhados nos amplos salões diante do deleite dos expectadores, que talvez nunca tivessem reparado como o rosto carrega tantas feições, tantas mensagens, tantos poemas. E depois, numa incrível manhâ de quinta-feira, o espetáculo de portas abertas no majestoso Teatro Municipal chamado CENA ABERTA, A Tragédia na Ópera, com explêndidas árias selecionadas de ORFEU, de Gluck, A Dança das Fúrias, com o Coral Paulistano; O Coro das Feiticeiras, de MACBETH, de Verdi, com o Coral Lírico; O Final do Ato III de ROMEU E JULIETA, de Gounod, com os cantores líricos do mesmo Coral Lirico; a ária Ah, Piu Non Ragiorno, de RIGOLETTO, de Verdi, com os cantores líricos do Coral Paulistano; o Ecoute, Compagnon, de CARMEN, de Bizet, com os os cantores líricos Laura Amberi, Adriana Magalhães, Heloisa Junqueira, Valter Felipe, Eduardo Goes e Sandro Bodilon; e para concluir o final da ópera TANHAUSER, de Wagner, com os liricos Rubens Medina, Márcio Martins e Magali Litieri. Tudo sob a batuta de Mario Zaccaro e a direção cênica de Vivien Buckup. Uma verdadeira manhâ de primavera paulistana. No Teatro Alfa, a estréia mundial da coreografia ONCOTÔ (caipirismo mineireiro que quer dizer "Onde é que estou?") do grupo mineiro (de projeção mundial) CORPO, acrescido de LECUONA (série de quadros calcados nas canções de Ernesto Lecuona). Espetáculo desnorteante, embevecedor, transbordante de plasticidade, sensualidade e de coletiva coordenação motora (estética a incrível sintonia - mobilidade automática?- dos bailarinos em pares e grupos, sem o menor deslise ou errinho, assim ao vivo em tantas emaranhadas, ágeis, ciclópicas, entrelaçadas evoluções). E mais uma vez as mãos ficaram sentidas de tanto aplaudirem a Família Pederneira e os bailarinos(as) emplumados na sensualidade onírica de imemoriais deidades, bailando maciamente ao longo do tempo e ainda agora mesmo. A apoteose da temporada estava reservada para a última noite com a performance de Maria Bethânia, a nossa deusa musical de tantos anos seguidos de sucessos e mais sucessos. Eu que sempre colecionei seus discos e decorei suas específicas interpretações e que inexplicavelmente nunca a tinha visto ao vivo..., tive que preparar meu coração para vê-la assim cada vez mais jovem e bela como sempre a imaginava, portadora da mesma voz encarnada que um dia tentei descrever num dos contos do livro "Aço Frio de Um Punhal". O repertório do show na casa de espetáculos da Avenida Jamaris (a dois quarteirões do apartamento de minha filha) é de composições de Vinicius de Morais e seus parceiros Chico Buarque, Toquinho, Jobim, Adoniram, Baden Powell, Carlos Lyra, uma torrente de fluídos, a tocante revelação em cada entonação suspirosa e flamante, uma esteira emocional. Ela surge discretamente, pequena e igualável no palco, mas aos poucos vai engrandecendo, criando asas e pernas e braços além da cabeleira enluarada, e vai às grimpas de si mesma e logo toma conta do palco e da platéia e da orquestra e de tudo mais naquele ambiente repentinamente ampliado e luminoso. E num átimo não é mais a moça pequena e modesta, mas sim a mulher imensamente bonita e fascinante e faceira e maravilhosa, o amor de toda a gente, a interprete de todos os sonhos de amor, a flor de todos os sentimentos de amor. E encanta cantando o repertório anunciado e, cúmplice da platéia, acrescenta canções igualmente empolgantes de Noel Rosa , Ary Barroso, Dorival Caymi, Gonzaguinha e outros luminares do cancioneiro nosso de cada dia da bela e sonhada eternidade das maravilhas, da cantora maravilhosa que sempre é e será.

(*) Texto publicado na edição de 20/08/05, no jornal Magazine, Divinópolis (MG).