segunda-feira, agosto 29, 2005

17 – NUM CANTEIRO DE FLORES (*)

Esse lugar aí onde repousas
a dois passos do bosque escuro
onde o verde vivo da serpente assustada
é ouro vivo nas mãos da fada.
As trilhas que a alma segue à luz pendente
o pássaro arcaico das quimeras
tantos enfeites no chão trançado de sombras
Esse lugar sagrado, onde repousas,
tornou-se mais belo com o passar do tempo,
que até sofro em presumir, ái de mim!
que alguma parte de teu apaixonado ser
ficou infiel a mim aí
nesse lugar debaixo da relva, onde repousas.
Ou será que não estás mais aí e sim
num lugar distante, e já me esqueceu?
Ou alguém ao lado de teu coração te afagas aí?
E então? Por Deus, e então?
Uma sombra de folha beija teus lábios?
O raio de sol que penetra o seio da terra
Aquece teus pés e tuas mãos,
Mantém em serenidade teus meigos caprichos?
Os brincos de flores silvestres e o pálio
de auras e aragens e aromas bafejam o cordel
de teus meigos anseios?
Ou será que outro moço aí a teu lado tomou
o meu lugar e ama-te aí mais do que eu aqui?
Aí embaixo (como vou saber?) o intrometido
Não estará a enreda-la de palavras afetivas
Mais plausíveis do que as minhas?
Pobre de mim aqui, a pensar feridas e tristezas
Aqui neste lugar de sombras onde estou,
sob o qual docemente repousas.

As luzes que minha alma procura
estão nos olhos agora cerrados,
estão agora definitivamente lacrados
nesse lugar aí debaixo da relva?
As abstrações ardentes de teu corpo imortal
ornaram as paredes do jazigo, dilatando-as,
e a orquídea que espelha a tua imagem
pode conceber outra fé em teu amor?
E a brisa primaveril que vem do rio
pode arrebatar, parte por parte, minha lembrança
dos olhos de teu meigo afeto?
Ah, esse lugar aí debaixo da relva!
há muito ficou mais belo e afortunado,
tanto que me faz pensar, ái de mim,
que alguma parte de teu apaixonado ser
me ficou infiel aí
nesse lugar onde repousas.

(*) Paráfrase de um texto em prosa de Marie de France (ll54-ll89), citado por Will Durant, em sua História da Civilização (l2 volumes), traduzido por Monteiro Lobato, edição da Companhia Editora Nacional, SP, l955.