domingo, novembro 20, 2005

ÉDIPO, DOS MALES O MAIOR

Sua martirizada figura transborda da mitologia e da literatura oral da eterna e universal Grécia dos deuses, heróis e sábios. Sua convicção pessoal de inocência, abalroada pela imposição social da mácula de culpas terríveis, como a de parricídio e incesto, abre a cortina da tragédia humana e assume a relevância cenográfica na perícia de Sófocles, autor que não esgota o assunto em foco, mas que, depois de aproveitar dele o que mais lhe interessa, devolve-o às névoas da progressiva escuridão que exigem novas lanternas de esclarecedoras prospecções. E aí irrompem os comichões intelectuais, o caudaloso rio das interrogações e exclamações – e é assim que Freud se adianta, lúcido e sensível, a explorar o filão do hereditário sentimento de culpa diante do pecado e da purgação, revelando os ângulos da tragédia do arrependimento que acompanha a consciência do erro cometido, levando em consideração o papel do inconsciente individual/coletivo que parece apontar sempre para o lado de uma incessante errância humana, que inviabiliza a bênção de uma absolvição. Estamos todos, então, sufocados no mesmo barco insensato da culpabilidade? “Se estamos imersos em uma realidade onde o sonho é cada vez mais difícil e obriga-nos à constatação coletiva de que o inconsciente está em permanente movimento de fuga, nunca onde esperamos que esteja”, - assim escreve Miriam Chnaiderman sobre a tragédia comum do dia-a-dia de todos os mortais da humanidade. Naquele tempo Apolo proibiu a Laio e a Jocasta (rei e rainha de Tebas) que tivessem filhos, sob pena do pai ser morto pelo primeiro que nascesse. Desobedeceram – e tão logo Édipo nasceu foi levado para longe e abandonado ao relento e às feras, sendo depois encontrado, são e salvo, pelos pastores de Pólibo, rei de Corinto, que achou graça no menino e adotou-o como filho. Sabendo, depois de crescido, que carregava a maldição, e julgando ser filho de Pólibo, saiu de Corinto e, no caminho, encontra uns viandantes, com os quais arenga e, sendo atacado, em defesa mata os antagonistas, sem saber que um deles era Laio, seu verdadeiro pai. Seguindo a esmo pelos caminhos do mundo afora, encontra a Esfinge e decifra seu Enigma, que, indecifrável, causava o massacre paulatino da juventude tebana: como prêmio ele desposa a rainha Jocasta, sem saber que ela era sua mãe, e com ela tem os filhos Eteócles, Polinices, Ismena e Antígona (esta, uma das mais belas e doces figuras da mitologia e da tragédia gregas). Depois, por causa do incesto não punido, nova epidemia assola Tebas, e Creonte (tio e cunhado de Édipo) vai a Delfos consultar o Oráculo, que vaticina que o mal de Tebas não será extirpado enquanto o assassinato de Laio não for punido. Aí entra o adivinho Tirésias e aponta Édipo como o autor do crime. Concatenando os indícios e dados de sua vida passada, ele se conscientiza da culpabilidade e se desespera, fura os próprios olhos, para não ver os filhos incestuosos, e Jocasta, sua mãe e esposa, enforca-se na cortina do palácio. Perseguido ´por Creonte e exilado em Colono (arrebaldes de Atenas), ele é apaziguado por Teseu,com as palavras: “quando se aquieta o espírito, as ameaças se desvanecem”; e pela elegante sobriedade do Coro, que menciona as impregnações da cultura imaterial da paisagem crivada de sinalizações icônicas da história, das lendas, do imaginário e das tradições inventariadas no patrimônio da terra e do povo no reinado ateniense de Teseu. Uma história para ser lida chorando pelas pessoas irmanadas no mesmo fluxo sanguíneo do corpo e da alma: o filho que é marido, os irmãos que são tios e sobrinhos, os deuses humanamente desarrazoados, as crianças abanando os ramos suplicantes, a maldade capaz de enfrentar as pedras: afinal o sofrimento é que dá ao ser humano o tamanho de sua grandeza? Na bagagem dos arautos estão a sabedoria da piedade ou as inconveniências dos deuses atritados lá entre eles no empíreo olímpico? Como seria doce viver fora dos males!, exclama, condoída, Antígona, irmã e filha de Édipo, a quem protege e ama como irmã e filha.... Sim, eis aí, pois, uma das raízes do problema mais complexo que nem Freud explica. Ou explica? Se o nosso inconsciente subverte o silogismo cartesiano, aí então é que o instinto aproveita e corrompe o pensamento antes incólume? A carne tenta e o ferro entra, como lá diz o aforismo escatológico. Na dúvida, quem não recua, avança, avança ou debanda, ladeando, pois se ficar vira estátua de sal gelado, cái em depressão. Vejo a voz, diz o cego Édipo, e também as oliveiras, os loureiros, os vinhedos, as fúrias, as eunêmides (umas temerosas, outras generosas). Vejo a voz, ele diz, carregado de amores dolorosos, de infindáveis aflições.