sexta-feira, março 28, 2008

O LIVRO DOS NOMES (*)

A perícia da autora com as palavras – como se debulhasse uma espiga ou formatasse uma espiga debulhada – é a sua varinha de condão que a leva onde ela bem quer na ida e na volta, colhendo e oferecendo as flores e as frutas da poesia fora do verso e dentro dos objetivos mais visados: uma passagem feliz pelos obstáculos infelizes, uma reflexão filosófica na sombra psicológica, uma incerteza novíssima em cima de uma certeza sobrepujada, as evasivas que (com jeito) se solidificam, as firmezas que se abalam ou vice-versa – e assim o repertório das idéias e imagens feitas fazem do balaio de gatos um outro de pérolas. O viés da finura feminina, no qual as palavras preenchem seu papel com uma naturalidade que parece independer da mão humana, como se, femininamente, chegassem onde querem como brisas de chuvas e não como nuvens tempestuosas. É o marco inicial de uma descoberta, o livro dela? Creio que as autoras exponenciais: Virginia Woolff, Marguerite Yourcenar, Marguerite Duras, Emily Dickson, Nadine Gordimer, Clarisse Lispector, Susan Sontag, Ana Hatherly e Adélia Prado, começaram marcando não só o raio de ação, mas todo o campo de sementes de suas lavouras pessoais. Com o tino e o destino, Maria Esther Maciel.... A prosa, leve e profunda, é poética; a narração, como que imperceptível, é sutil; a descrição, enxuta e elegante, embevece e agracia o leitor, conduzindo-o na felicidade de ver e sentir pelas janelas das páginas as imagens que são ao mesmo tempo conceitos na mesma leveza, na mesma fluência de uma profundidade plenamente hospitaleira. Puro enlace matrimonial das palavras com os signos. Enlevo e elevação, riqueza e beleza. Machado de Assis comedido. Guimarães Rosa filtrado. Jóias no ar, quitutes na mesa, sonhos na cama, sol e chuva lá fora – e as outras pessoas no mundo nosso de cada dia. Antologias expositivas da imaterialidade. O leitor, repentinamente ávido, não pára de ler, prevendo mais estímulo na próxima página, mais propensão, mais fulgor. Transido na precisão de ter que deixar uma parte para saborear depois, e premido pela necessidade de seguir aflorando a continuidade caleidoscópica, ele continua lendo, sabendo que depois pode ler de novo (uma nova leitura que nunca será uma mera releitura), uma vez que as novidades saltam das páginas em momentos revezados. Mestre no traçamento psicofísico dos personagens de seu sintético e ao mesmo tempo expansivo romanceiro familiar, ela esbanja assertivas e metáforas, confirmando a fecunda vocação poética demonstrada em seus livros anteriormente publicados. Impossível evitar as eventuais transcrições: “Odília é daquelas pessoas que sempre aparecem quando não são desejadas e que, mesmo quando saem de fininho, deixam rastros” (pág. 93); “...passou a sentir um desejo oblíquo por algo ainda sem nome e sem origem” (pág. 18); “será que só se tem verdadeiramente uma pessoa na hora de perdê-la?” (pág. 19); “não sei o que fiz para merecer este rosto” (pág. 23); “que amor é esse dos cães, que não descansa?” (pág. 85). Assim por diante nos períodos e parágrafos das 170 páginas – em todas as múltiplas direções que a autora leva os personagens (e com eles os leitores) de maneira subjetiva e espontânea. As páginas não são fisicamente caudalosas, mas transbordam do livro imaterialmente torrenciais, criando fantásticas superposições nas pausas do mimético mosaico. O leitor fica muito à vontade diante das páginas abertas: como se andasse por ruas e caminhos que conhecia apenas “de vista” e que agora toma conhecimento de outros ângulos e de outros sons, das particularidades contextuais e genéricas – tudo agora fluindo e aproximando de sua mente e de seu coração. Munido de muitos óculos de graus variados e contando com a familiaridade temática da toponímia e da cultura popular do cenário (que parte de Patos de Minas e vai pelo mundo afora em belas e verazes pinceladas) ela, cônscia do étimo e do léxico, evoca um respaldo de Nietzsche, segundo o qual o poeta carismático não precisa procurar as palavras: elas procuram-no para melhormente florescerem, frutificarem, cantarem no festival das entidades beneplácitas. É assim que diante do texto dela, o leitor atenta para cada palavra, vírgula, reticência. Não perde um detalhe sequer, porque sente que o vocabulário, mais do que exprimir, representa as coisas e os seres metaforicamente, quase literalmente. E assim, depois de abrir a frase no período e desenvolver o parágrafo, ela, Maria Esther Maciel, depois de satisfazer a expectativa do leitor sequioso pelo melhor dos textos, ela impregna o teor de acréscimos inesperados em forma de adornos que fazem do bom o melhor, ainda e sempre. Ela consegue falar o que quer, não só porque é amiga das palavras. Mais porque as palavras gostam dela, adoram ficar em suas mãos, falar em seus pensamentos. Neste ponto, é uma escritora invejável, iniludível. “É nos desvios que as coisas acontecem”, ela afirma na primeira volta de sua roda gigante, que oferece as sucessivas vistas crescentes e decrescentes das casas e das pessoas de muitos ângulos em movimento rotativo. “Conhecer as serpentes é tão relevante quanto conhecer as orquídeas”, ela escreve, concluindo o périplo vertiginoso. E assim afortunadamente recebemos o feixe de páginas e de estórias que se alinham e se deslocam ao sabor de nossos olhos enriquecidos no trânsito novidadeiro da vida e do mundo. 

(*) De Maria Esther Maciel - Editora Companhia das Letras, São Paulo, SP, 2008.