MOSÁICO MIMÉTICO
O último dia do ano está muito perto do primeiro dia do outro ano. É só virar a página do ódio que a do amor surge, rútila e veraz. O melhor da festa é o sono da paz, depois; e não a ressaca da insônia, depois. “ O catolicismo barroco, repleto de sobrevivências pagãs, com seu politeísmo disfarçado, supertições e feitiçarias”, deve ter causado estranheza aos portugueses que chegavam em nossa terra em 1808, segundo Marta Abreu. Para coibir os excessos da liberalidade, foi criada a Intendência Geral da Corte e do Reino de Portugal, cujo primeiro titular (1808-1821), Paulo Fernandes Viana, perseguiu sem tréguas os “antros de feitiçarias dos escravos”. O Rio de Janeiro, para Pablo Neruda, era a “la puerta de uma casa vacia.” Para Tom Jobim “o homem é um animal daninho” – e “todo brasileiro só deveria carregar caixa de fósforo com licença do IBAMA”. As pessoas estão endoidecendo nas zonas periféricas das grandes cidades brasileiras? Os malandros e pedintes amontoam-se, ao longo e em círculos, das ruas e praças, pirracentos, feiosos, atritantes e maltrapilhos dos pés às cabeças, aos trancos e barrancos, destituídos de bens materiais e imateriais, pustemas sociais, embadernados, ferrenhos articuladores de maledicências, munidos, ora de uma fúria de lascar o cano, ora de uma preguiça assumida e desgraciosa – e nem mesmo as penas de suas culpas voam mais no ar parado das próprias maledicências. A bela e imponderável imagem de Mônica Vitti, no filme ECLIPSE, de Michelangelo Antonioni: intacta, se desconecta do próprio casulo, sem perder a formosura, agora imersa no breu interior de si mesma. Esquecida de si, lembrada dos outros, ela quer e não quer a mesma coisa que a desperta e desanima. Assim fica difícil viver. Não se aceita, não se acerta. A luz epidérmica não preenche os vãos da inocuidade, da obscuridade interior. Como o próprio filme, ela promete, mas não cumpre. Ela é o filme. E sua perdição tramática salva o cenário e o entrecho da vacuidade envolvente. É a propalada incomunicabilidade antonioniona por excelência em suas mais imperfeitas conotações humanas, em suas mais perfeitas conotações fílmicas. O mundo é um mosaico mimético para a vida sempre dinâmica. Para exprimir o que há e o que houve e o que vai haver, temos que nos virar com a infinidade de palavras dicionarizadas e também com as potencialmente incrustadas no limbo entre a imaginação e a realidade. Enfim, como eu já disse alhures: primeiro a pancada, depois a podridão. Assim na fruta, assim na carne, assim na mente. Mas ela, a moça sem fim, é a pureza que entra na imundície, sem se contaminar. É assim que a saúde derrota a doença: o riso abaixo da lágrima, brilha mais alto.
0 Comments:
Postar um comentário
<< Home