segunda-feira, novembro 28, 2005

A EPOPÉIA BRASILEIRA DE GUIMARÃES ROSA

No livro de contos PICUMÃS, o autor goiano Alaor Barbosa descreve e narra a fluência da vida numa paisagem goiana que dá seqüência, em novas feições, à mineiridade dos sertões fechados e descampados de terras férteis, ao mesmo tempo sóbrias e fartas. Alaor é de Morrinhos, cidade que conheci quando era goleiro no time de futebol da construtora da Barragem de Cachoeira Dourada, onde trabalhava nos já distantes tempos da mocidade. No livro ele inclui o conto Buracão, que me lembra um que escrevi com igual nome, no qual relatava as estrepolias infantis na Marilândia, e me remete também a outro lugar de igual nome, em Cláudio, onde meu trisavô Bernardo Barreto, Comandante da Guarda Nacional do Desterro, escapou da perseguição aos insurgentes da malograda Revolução Liberal de 1842: escapou mas teve os bens seqüestrados, que lhe foram parcialmente devolvidos depois, quando foi anistiado e promovido do cargo de Capitão ao de Major, do batalhão do Desterro para o da Villa de São Bento do Tamanduá (hoje Itapecerica). A leitura de PICUMÃS propiciou-me, ainda, a relembrança da aprazível região divisória de Minas com Goiás, através do então largo e profundo rio Paranaíba – cenário que utilizei na escritura do romance Apenas Um Coração Solitário (título de um filme da década de 40, que não vi, baseado num romance de Carson McCullers, que não li: como vê a apropriação foi só da tradução do título do filme, que calha a contento no contexto romanesco de uma trilogia inédita). Na atenciosa e gentil carta que me mandou, ele fala de Morrinhos, Cachoeira Dourada, das visitas que já fez à nossa região, passando em Divinópolis, Itapecerica, Arcos, Marilândia, Cláudio, dizendo ser “um amoroso de Minas”, terra de seus ancestrais, que ele generosamente concorre para aureolar nas citações das lendas e mistérios amplamente divulgados através da arte barroca, plástica e literária, de Aleijadinho, Ataíde, Bernardo Guimarães, Drummond, Murilo Mendes, Adélia Prado, e principalmente Guimarães Rosa, sobre o qual escreveu importantes textos, inclusive o que gentilmente me mandou no livro A Epopéia Brasileira Ou: Para Ler Guimarães Rosa, fruto de uma minuciosa pesquisa, de abalizada explanação e de propiciatórias indicações de leituras e releituras da obra roseana, levando-me a tirar da estante o majestoso romance Grande Sertão: Veredas, para ler pela terceira vez. e agora, sem resistir à tentação, valho-me dele, Alaor Barbosa, para agraciar os leitores desta coluna com algumas jóias pinçadas das veredas sertanejas, conforme abaixo: “só nos olhos das pessoas é que eu procurava o macio interno delas”. “A mão de Diadorim, assim apertada de tudo, nela um suave de ser era que me pertencia, um calor, a coisa maciamente. São as palavras?” “Deus não quer consertar nada, Deus é uma plantação...”. O diabo vige dentro do homem, os crespos do homem – ou é um homem arruinado, ou o homem dos avessos. Solto, por si, cidadão,é que não tem diabo nenhum”. “Amizade de amor surpreende uns sinais da alma da gente, a qual é arraial escondido por detrás de sete serras?” assim falava Riobaldo Tatarana, o Urutu-Branco, que tem “culpas em aberto”, mas que ignora quando elas começaram. Pois é assim mesmo a leitura e a releitura da obra de Guimarães Rosa, o primeiro escritor brasileiro a ver no sertão o núcleo da verdadeira cultura brasileira. Até então o que via no povo do litoral era uma vida apenas colonialmente negativa , de costas para o maior atributo da brasilidade que é a interiorização, mediante o que podemos até acreditar num litoral apenas reprodutor e num sertão essencialmente criador, premissa implicitamente levantada pelo movimento modernista de 1922 e certamente consolidada e levada à mais íntima consequência pelo nosso querido Guimarães Rosa. Eu mesmo sou prova de seu cosmopolitismo literário, quando correspondia anos a fio, por via postal, com a escritora tcheca Pavla Ldmilová, que traduziu para a língua dela o Grande Sertão: Veredas: eu sentia nas cartas dela, como ela lá na sua nórdica frieza, vivia encantada no calor das luzes mineiras, baianas, goianas,do nosso Autor. E agora, antes de pegar na estante o livro para a inadiável terceira leitura, não me abstenho de novamente presentear os leitores desta coluna com mais algumas frases que são como epígrafes para os poemas dos próprios leitores, isso com a reverência ao Alaor e a respectiva licença. Ei-las: “Mocidade é tarefa para mais tarde se desmentir”. “A religião: para se desendoidecer, desdoidar. Reza é que sara da loucura”. “Altas borboletas num desvoejar”. “A gente sabendo que ele (o diabo) não existe, aí é que ele toma conta de tudo”. “Deus existe mesmo quando não há. Existe porque é necessário. Sem Deus é o vazio” “Aprender a viver é que é o viver”. “Perto de muita água, tudo é feliz”. “As horas é que formam o longe”. E assim vai o Riobaldo falando e o Rosa escrevendo: “Não há o bom remorso. Minha antiga pessoa. O amor, já de si, é algum arrependimento. O obedecer do amor é sempre o contrário. Ver, em Goiás, como no mundo cabe o mundo.” Obrigado, Alaor Barbosa, por tantos momentos felizes, vividos agora.