sexta-feira, fevereiro 17, 2006

AÇO FRIO DE UM PUNHAL

Fragmentos.

1 - A Voz Encarnada (*). A iluminação pública da rua noturna, filtrada pelos vidros das portas e janelas, banhava de penumbra o interior da casa, onde eu cabeceava, esperando a visita da mulher de toda segunda-feira depois das vinte e duas horas. De vez em quando as paredes bailavam , as emoções crepitavam...: seria a aproximação dela ou meras projeções de faróis de automóveis que passavam na rua ou então cristalizações, imagens de sons vocálicos de Maria Bethânia, suspirando nos arrepios? A mulher demorava. mas era bom cabecear assim na preguiçosa, possuído de novo satanismo, abstraído em novas encarnações, amando um novo percurso da imaginação à flor da pele pungida. Acabara de regressar dos sertões de outros municípios, lavando as mãos nos contos e poemas do levítico e do folclore, tomando o banho de água benta das canções ao mesmo tempo instigantes e purificadoras. O amor por meio de uma voz..., a voz é o amor da voz por dentro de cada parte de fora, por fora de cada parte de dentro: o sexo e o coração na mesma palavra, com os mesmos sinais de anomalias encantatórias. A voz dela nela é a impregnação e a encarnação de um calor que sopra e apaga o frio da alma desterrada. A mulher que demorava era também um mistério. tinha lá algum nome, endereço, marido, pai e mãe? Apenas chegava toda segunda, banqueteava comigo, e voltava para suas trevas. Se eu lhe pedia para ficar mais um pouco, que ainda era cedo, ela apenas respondia: cedo para quê?, para morrer? e assim ia, ou melhor, assim virava música na radiola. Em vez de ficar sozinho, aí sim é que me rodeiava de atenções objetivas (algumas) e subjetivas (muitas). Rochas se abriam como diáfanas cortinas, para dar passagem a tantas entidades telúricas, anímicas, lúdicas e oníricas, que eu tanto amo. A revoada de silvos e aragens abençoavam-me o corpo desamado pela mulher que então fazia hora comigo. A voz na radiola acompanhada do tinido de bandejas e chocalhos, tarolas e cabaças, imprimiam na janelinha mental os versos: pergunta ao poeta se ele me entende pergunta ao herói se ele me ama. Entre um samba de roda (“quê menina é aquela/ que entra na roda agora?!/ Ela tem um remelexo/ que valha-me Deus e Nossas Senhora/ que valha-me Deus e Nossa Senhora!”} e uma canção de protesto associando o carcará, que “pega-mata-e-come”, à figura igualmente voraz do enfezado tirano, ela, a mulher que demora, surge transvestida de bandoleiro e andrógino diadorim, ali mesmo no alpendre sertanejo de minha casa urbana, envolto de mimos nas almofadas sob o dossel da aquiescência do desvelo e da sinceridade. Embalados no aconchego da voz do amor recuperado, solerte e obstinado, eu sentia no ar o estrupício do gavião que chega com a notícia pedindo justiça social nos escombros da nacionalidade. Aí se erguem o corpo e a alma e, instantaneamente, o turbilhão de ecos selvagens que cavalgam na voz da cantora, abrindo porteiras, atravessando pinguelas, subindo nos morros da morte e da vida. Passado o impacto vem o alívio do intermezzo de um chamego, de um samba-canção. Mas mesmo de longe ainda se ouvia o hino dos radiadores selvagens, estribilhados por carcarás e siriemas. “Salve Estácio, Salgueiro e Mangueira, Oswaldo Cruz e Leblon”: o samba da Bahia é Carioca e vive-versa e vide-verso (“Ah que samba bom,/ ah que coisa louca/...eu também tô aí tô aí/, o quê que há?/... eu também tô aí nessa boca!...”). E agora alguém bate mesmo na porta? Será a cautelosa amante das segundas? Oh não, na verdade batem é no meu coração, com o gingado dos teremins, cilindros e coités. A voz novamente ganha o corpo ao embalo dos sinos, ao estrépito das bacias e obuses, apitos e buzinas do samba rasgado proibindo a morosa angelitude, liberando o vôo das garças e das graças das novas enfatizações de seus diálogos com o pistonista, de seus flertes com o sanfoneiro nordestino. Ninguém sabe abrir e fechar assim como ela, cantar assim como ela: com as asas e caudas, as vísceras e instintos melódicos, as veias e vias sonoras dos pés à cabeça. Assim da espiga as palavras se debulham verazes e sensíveis. Agora tento reproduzir o alcance da entonação do langor e do ardor onipresentes em cada sulco do pergaminho de azeviche. Mas não é bem assim que se colhe amendoim. Primeiro tenho que recordar o que ouvia dos passarinhos nos campos de minha terra natal, depois tenho que mentalizar a possessão erótica e... só assim...só assim a alma se despe para o corpo. Lembro que depois o cavalo rompia a subida do morro enquanto o sol dava os últimos acenos naquele pequeno fim de mundo, naquele grande fim de tarde de minha terra sem palmeiras, onde canta esta que vos tanto encanta. Justamente a que está com os seios de fora, o coração no céu da capa do disco, repleta de tutaranas e vagalumes e cajus e amoras, do lp do recital da boite barroca, do tempo que não passa nunca mais. Dois corações voluptuosos na ausência da mulher que eu esperava, a que portava, na semana passada, uma pequena mágoa nos lábios. A mulher dos olhos vistos pelos instrumentos musicais da noite mais pesada: as baterias do ódio e os violões do amor. Finalmente fecho a porta da casa para melhormente guardar os inestimáveis bens de cada canção (estive quase a dizer de cada coração) que dentro do meu antes pobre e agora enriquecido coração. 

 (*) Conto publicado em 1986 no livro em epígrafe, pela Editora Guanabara (RJ), e agora revisado (especialmente) para novamente homenagear à cantora.