POR QUE CHORAS, SAXOFONE?
Fragmento do romance inédito.
Ima Sumac cantava o hino
pange, língua, gloriosi córporis mysterius
na procissão da Catedral da Boa Viagem até à Igreja São José
na quinta-feira santa...
eu seguia perto do andor e da banda
sem perder um timbre cintilante...
ela cantava o sangue dos céus,
que foi o preço do mundo e o sparso verbi sémine
ninguém nunca celebrou o tantum ergo sacraméntum
assim
- era mais grandioso do que em Saúde,
mas eu via as pessoas de Saúde nas pessoas de Belo Horizonte...
as antífonas as matinas e laudes
o cibório o turíbulo os sentidos em genuflexão –
(não tirei os olhos e os ouvidos de Ima Sumac)-
era desejo do pai que me ordenasse sacerdote e
assim pudesse um dia recitar a celebração do dóminus
sit in corde tuo, et in lábilis tuis
mas ele morreu cedo e minha fé
fragmentou-se em outros ramos do mato.
Mas a lingüiça não corre atrás do cachorro...
se um dia esfriar a cabeça conseguirei obedecer-me?
temo a densidade da redução
os dentes pontiagudos nos maxilares
a árvore da vida, o rio da morte
as vontades de viver e de morrer alternam-se...
por preguiça não voltamos ao paraíso, diz Kafka
mas manhãs das aleluias rebentadas
metade sol metade frio...
revejo as moças da Espírito Santo com Tupis:
Deanna Durbin em novos ritmos de andar e de vestir
Ann Blytt, novas formas de beijar nas vontades
Myrna Loy a xingar os macartistas, a dar de ombros...
as ruas cortam pastos e palhoças
empurram ao deleite do precipício
a árvore que corria no cerrado, eu vi!
a obscura sobra da claridade dela
que alonga na sabedoria a hora de escolher uma das moças:
a que aproveita a sobra obscura da claridade
até morrer de velha nas novidades.
O que flui, flui da aurora:
a fonte é o destino...
...................................................
Nosso Senhor Jesus Cristo, depois de falar e fazer
ouve e sofre:
mexeu na caixa de marimbondos, tem que agüentar os ferrões!
são três horas de treva no Gólgota:
Eli Eli Sabachtami?
abandonado pelo pai pelos irmãos, expira...
e agora, como podemos ser felizes?
Ima Sumac pergunta “meu povo, o que te fiz eu
ou em que te contristei?”
o coral das vozes da Boa Viagem responde:
“eu te alimentei com o maná do deserto,
e tu me alquebraste de tapas e açoites”...
flect ramos, arbor alta, tensa laxa víscera,
ela prossegue, cantando
até que se apagam as velas e o silêncio baixa
sobre a nave.
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