sábado, fevereiro 04, 2006

POR QUE CHORAS, SAXOFONE?

Fragmento do romance inédito.

Ima Sumac cantava o hino pange, língua, gloriosi córporis mysterius na procissão da Catedral da Boa Viagem até à Igreja São José na quinta-feira santa... eu seguia perto do andor e da banda sem perder um timbre cintilante... ela cantava o sangue dos céus, que foi o preço do mundo e o sparso verbi sémine ninguém nunca celebrou o tantum ergo sacraméntum assim - era mais grandioso do que em Saúde, mas eu via as pessoas de Saúde nas pessoas de Belo Horizonte... as antífonas as matinas e laudes o cibório o turíbulo os sentidos em genuflexão – (não tirei os olhos e os ouvidos de Ima Sumac)- era desejo do pai que me ordenasse sacerdote e assim pudesse um dia recitar a celebração do dóminus sit in corde tuo, et in lábilis tuis mas ele morreu cedo e minha fé fragmentou-se em outros ramos do mato. Mas a lingüiça não corre atrás do cachorro... se um dia esfriar a cabeça conseguirei obedecer-me? temo a densidade da redução os dentes pontiagudos nos maxilares a árvore da vida, o rio da morte as vontades de viver e de morrer alternam-se... por preguiça não voltamos ao paraíso, diz Kafka mas manhãs das aleluias rebentadas metade sol metade frio... revejo as moças da Espírito Santo com Tupis: Deanna Durbin em novos ritmos de andar e de vestir Ann Blytt, novas formas de beijar nas vontades Myrna Loy a xingar os macartistas, a dar de ombros... as ruas cortam pastos e palhoças empurram ao deleite do precipício a árvore que corria no cerrado, eu vi! a obscura sobra da claridade dela que alonga na sabedoria a hora de escolher uma das moças: a que aproveita a sobra obscura da claridade até morrer de velha nas novidades. O que flui, flui da aurora: a fonte é o destino... ................................................... Nosso Senhor Jesus Cristo, depois de falar e fazer ouve e sofre: mexeu na caixa de marimbondos, tem que agüentar os ferrões! são três horas de treva no Gólgota: Eli Eli Sabachtami? abandonado pelo pai pelos irmãos, expira... e agora, como podemos ser felizes? Ima Sumac pergunta “meu povo, o que te fiz eu ou em que te contristei?” o coral das vozes da Boa Viagem responde: “eu te alimentei com o maná do deserto, e tu me alquebraste de tapas e açoites”... flect ramos, arbor alta, tensa laxa víscera, ela prossegue, cantando até que se apagam as velas e o silêncio baixa sobre a nave.