sábado, fevereiro 18, 2006

MONÓLOGO E PRANTO

Fragmentos. 

(Virginia, a menina): ...mas nisso atentei para a cantação dos galos: eu não disse que não sabia da missa a metade? um galo de barro, outro de madeira, tantos outros na folhagem de carne e osso... o canto vem de longe e chega aos pés da cama (deve ser do galo marrom da casa de Mariazinha), chega filtrado nas árvores da madrugada: sobe e desce o morro, esquenta os ramos, e assim atenuado é mais que um murmúrio que me aflige ao evocar o mataréu o esbarrancado, que envolvem nos perigos a casa dela. Num átimo vem a resposta do canto dele: chega o rompante amarelo do da casa de Ivone, aquele de penas revoltas e bico doce: chega tresmalhado como ele é no terreiro a batear asas e trepar nas galinhas a toda hora. Será que Ivone não acorda com o rompante? se acordou deve ter virado na cama e ouvido o bicudo aqui de casa alçando-se nas alturas e extensões, a pôr toda a força da vida na saudação do amanhecer. Ele empina o pescoço, libera a sufocação, atinge culminâncias de horizontes planos e inclinados. Ela deve ter ouvido o que ouvi: as respostas orquestradas dos outros nas quinze bandas: a múltipla derramação sonora, liderada pelo impávido galão emplumado da casa de Telinha, o cocorocó mais atinado, que empina a vibração debaixo dos pés de pitangas e amoras e limas de bicos: ele não se faz de rogado, é o rei do terreiro dispara as setas de cupido em todas as galinhas do mundo.... Fico a desejar que a Telinha espreguiçadeira, não perca a maratona de sons da linda alvorada (pois é de manhã que o dia começa nas roças produtivas): as intercalações harmoniosas, a fluência anunciante de mais um dia no mundo. Como as lonjuras aproximam-se! logo os cantos amiúdam-se: o enxame de vozes geométricas: cada quintal de casa roceira tem o seu cantor: centenas de galos afinados na comunhão dos santos de todas as partes do mundo. ...(Joamir, o rapaz)... Sou meio-sem-jeito de lidar com as moças fico sem saber onde pôr as mãos chego a bambear as pernas, se me aproximo fico sem saber o que dizer... o que há de errado em mim? os cabelos despenteados? alguma irregularidade (alguma mancha) nos dentes? sou acaso mais feio e desajeitado que os outros? ou será que ela não é flor para o meu nariz? é virgem na sabedoria e sábia na virgindade? sei que mesmo na concha há transparência e ressonância sei que ela arredonda a própria alma quando se põe a caminhar nas ruas do arraial sei que a beleza seria fulminante se se abrisse de uma vez pois só de espiar na fresta fico bobo de ver. A verdade vem da sombra e se torna beleza na luz... quando a luz apaga o sonho desperta... fico esmirrado nas cercanias da Água Fria: tenho os olhos maiores do que o estômago? quando vou rarear minhas idas ao arraial? ...(Lourenço, o velho)... A saudade é o amor, que lívido, retorna? é a necessidade de preencher a lacuna de uma separação? é a necessidade de refazer a união de uma unidade cindida? Desde que perdi a Dalva nas tormentas lá do Fundão que vivo a procurá-la dia e noite sem parar às vezes, cansado, penso que ela também me procura escondendo-se de mim nas moitas e barrancos nas anuviações visuais, nas abstratas imediações Foi assim que assumi o gosto de bater pernas para abaixo e para cima mormente nos lugares desertos e escuros mormente quando estiver chovendo e ventando o lume saltitante nas moitas reservadas que embrenha nos carrascais judaicos é nesse escuro que apalpo os tições, sem me queimar Será que sempre tive a mesma idade? um gosto a mais a cada dia que passa um fôlego a menos em cada suspiro? Os eremitas e penitentes freqüentaram em tempos remotos essas brenhas essas restingas esses breus? Os olhos arregalados dela agora os brilhos da espera demorada, os lábios gretados Ela está cada vez mais jovem e bela, mais linda do que nunca? O dia é bom quando demora a passar a roupa depois de velha dura mais Dou muitas voltas em torno de mim não abro mão de minhas licenças poéticas que são apêndices por assim dizer intrínsecos como os dedos as mãos os braços e as pernas.