terça-feira, novembro 21, 2006

CABECEANDO NA VIGILIA

1 – Do Cancioneiro Popular: Se eu soubesse quem tu eras ou quem chegarias a ser, não te dava minha vida, que hoje vive a fenecer. Amanhã eu vou-me embora. O que me dão pra levar? Se levo só penas e dores, como é que vou voltar? A barata diz que tem uma bela cama de marfim. È mentira da pobrezinha: a cama dela é de capim. Lá vem a lua saindo por cima dos laranjais. Olha, meu bem, não é a lua: é o mapa de Minas Gerais. Cravo branco, não me prendas, que não tenho quem me solte. Foste tu, meu cravo branco, que causou a minha morte? Alecrim da beira dágua, manjerona, poço fundo: a moça que quer casar, não namora todo mundo. Ô que graça de menina, que entrou neste salão. Parece uma beija-flor no pezinho de algodão. Menina, berço de rosa, galho de alecrim maduro: sinto que dentro do peito, meu coração está seguro. Quem de mim tem raiva boba, que vá pro mato se foder. E que lá uive que nem cachorro, e que não venha me morder. Subi no pé da roseira, para ver se te avistava: cada rosa que se abria, era um suspiro que eu dava. Lá no alto daquela serra tem um carneiro morto. Sabem do que ele morreu? Do coice de um gafanhoto. Minha gente, venha ver, uma coisa que nunca se viu: o tição brigou com a brasa, e a panela de barro caiu. Ela é bonita como a rosa, ela cheira que nem jasmim. Ela é boa como a bondade, mas não tem pena de mim. Nesta noite eu tive um sonho, que meu bem tinha morrido. Acordei muito assustado, já com outro bem no sentido. Rio abaixo, rio acima, lá vou na canoa furada, arriscando minha vida, pruma coisinha de nada. Que dia negro e sombrio é o dia que não te vejo. Mas se vens em noite escura, vejo o dia no teu beijo. Um desejo, outro desejo: é sempre assim o viver. A nossa vida é um sonho. O acordar é que é morrer. Menina dos olhos negros, que me deu água pra beber: não era sede, não era nada: era só vontade de te ver. Em cima do tronco seco, escrevi o nome teu. É tão lindo o teu nome, que todo o tronco reverdeceu. Dizem que o nosso cantar alivia as mágoas do coração. Eu canto e torno a cantar, mas as mágoas nunca se vão. Dentro de meu peito tem, duas rolinhas chocando. Uma voou, foi s’embora, a outra ficou me matando. 

2 – O Doce Prazer de Ouvir. O doce prazer de ouvir a indefinível voz de Adriana Calcanhoto. A sedução das proeminências (e indício das bochechas dos músculos das fofuras mamárias e das farturas de ancas e coxas e maçãs do rosto), e a voz dando brilho e perfume aos lábios voluptuosos e aos dentes graciosamente irregulares: e a voz dando mais carnalidade ao espírito, do qual é a origem e a ressonância. É assim que um arranjo sambístico de Lupiscínio fica igual a uma ária de Pucinni. 

3 – O Sofrido Prazer de Ler. As palavras são feitas posteriormente às coisas feitas, mas podem ser usadas prematuramente, antecipando os dizeres e os fazeres. É assim mesmo o procedimento de quem não se atém ao mero racionalismo da cultura pragmática. A musicalidade latente, intacta e implícita numa página escorreita de Henri James, de Fernando Pessoa, como contas de prata na face do lago, flores de neve despencando da árvore de natal, como diria Pedro Nava. Mas vamos e venhamos também nas páginas e alvíssaras do romântico patriotismo de Bilac, Castro Alves, Gonçalves Dias, José de Alencar: nunca mais se repetiu tão sincero fervor, tão convicta disposição de imaculado otimismo. O modernismo de 22 veio enxovalhar? Não e não. Veio discordar da dissonância política. reciclar o sentimento da nacionalidade, divulgar a rosa do povo pisoteada pelos estouvados dissipadores do erário público. E bate o bumbo e os pratos da nova (desafinada como a vida pública) orquestra sinfônica brasileira. Quem não gosta de ler? Só quem não recolhe suas arestas nem exprime seus afagos, só quem não gosta de si mesmo, quem não sabe primeiro monologar para depois dialogar. Só quem (ególatra, monomaníaco ou megalomaníaco) julga saber mais que os outros e assim vive a propagar a própria grosseira ignorância. Não gostar de ler e deixar o Balzac e o João Cabral na estante é sair por aí a bebericar, a fofocar, a contradizer os princípios de toda a salubridade...: ah, essa pessoa ouvem com uma estrela na testa ostentando os dizeres do sapo caindo do céu: “sái da frente, laje, senão te esborracho!” 

4 – O Incontido Dever de Ver Filmes. “No Tempo da Violência”, filme de Quarentino, com John Travolta e Maria Medeiros. Fui vendo e anotando. formas de violência: iluminação demasiada, som estridente, bons atores, linguagem chula e chocante. Os contrastes agressivos: os personagens que não têm nada a perder: o coisa à toa, o bisca ruim, o angu perdido, o vira-latas, o mal-me-serve, o funcho-brabo, o filho-da-puta, o sem-vergonha, o osso-duro-de-roer, o escroto, o caga-sebo, o filhote do cruz-credo. A maioria deles gosta de comer carne vermelha bem sangrenta. Vira-e-mexe estão bebendo, fumando, exercitando os requintes dos vícios mais hediondos. O prazer e a dor são igualmente bons e igualmente ruins; o perigo está sempre em primeiro lugar, ao alcance de todos;o espanto dos outros é uma espécie de espelho de seu regozijo; o duro que explode, o macio que sangra; o que mata para ver fazer careta. De tal forma que a doçura humana passa a ser uma fruta azeda e aziaga. Qualquer um deles está sempre preparado para arrebentar o que vê na frente: fica cego de repente porque já traz dentro de si uma cegueira de nascença. O filme todo é uma sacanagem à céu aberto. O mundo está mesmo assim ou o Quarentino está prognosticando ou exagerando? 

5 – A Instrutiva Leitura da História. Minas e o Brasil perderam um de seus melhores historiadores. FRANCISCO IGLÉSIAS. Justamente o que relacionava em linguagem enxuta e agradável os dados da pesquisa com as visagens da interpretação sob o duplo prisma do determinismo e da dialética. Sua obra precisa ser reavivada, para reavivar o gosto da leitura como algo dinâmico no tempo e não apenas como algo do passado, como costuma ser nas mãos de muitos historiadores. Tive o privilégio de estar pessoalmente com ele três vezes. A primeira em Pirapora, nos idos da década de 70, num daqueles badalados festivais de poesia que a Prefeitura de lá patrocinava. Ele era natural de Pirapora, mas vivia em Belo Horizonte, de onde ia, juntamente com a comitiva de lá (Sebastião Nunes,Adão Ventura, Affonso Ávila, Laís Corrêa de Araújo, Ângelo Osvaldo, etc). Reencontrei-o quinze anos depois num jantar em homenagem ao escritor e ministro da cultura, Roberto Fernandez Retamar, na Casa dos Contos, Belo Horizonte. Lembro-me que ele, sentado a meu lado conversava comigo e eu, sempre péssimo fisionomista, confundia-o com o também escritor José Aparecido de Oliveira, então secretário de Cultura do Estado de Minas (eles eram, na época, muito parecidos), e ele próprio fez, amavelmente, a corrigenda, dizendo que se lembrava de mim desde Pirapora, o que até me envergonhou, naquele instante. Estive com ele depois, no apartamento dele, em companhia da antropóloga e escritora Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti, que foi convidá-lo a participar de um projeto de pesquisa da cultura popular mineira, que ele não pôde aceitar por acúmulo de incumbências então assumidas. Mas desfrutamos de bons, de ótimos momentos de sua conversação inteligente e cordial.