sábado, novembro 18, 2006

SERAFIM E CEDALINA (*) - Conto

Era só atravessar a estrada em declive e chegar à porteira do pasto. Isso todo santo dia. Nem precisava visagens e intenções, sol brando e chuva estiada – ia sem ver. Aí pegava o trilho-mestre que a certa altura (de onde avistava o gado, a roça, o brejo, a capoeira e o capão da fontinha) ramificava, sumia na lonjura das tronqueiras e quebra-corpos, valos e pinguelas. Conhecia tudo aquilo como a palma da mão. Acompanhava o crescimento do mato, o volume de águas nas bicas, o sombreado dos coqueiros no brejo. Era tudo fortuito e gratuito, nem atentava mais para os tinidos da ampulheta no silêncio e no estalar dos bambus na moita. Já um tanto senil, retraído e desleixado, ainda alimentava a matreirice do simples desejo de ter um filho, e de ir logo passando toda aquela pobre e rica fortuna pra ele começar uma vidinha nos trinques. Mas a pobre e já um tanto combalida da Cedalina sempre foi estéril, estreita e encolhida, nunca ia além de si mesma. Tinha alguns filhos fora de casa, reconhecia, mas esses não contavam, não podiam ser declarados. As pupilas sempre dilatadas ao amanhecer na descida do Areião. Ela, a Cedalina, era e estava sempre viva, despachada, nenhum gato ou galinha tolhia seus passos dentro de casa, nem sua vontade de viver eternamente. Enquanto ele se quedava, olhando longamente, tencionando dizer alguma coisa, ela não estava nem ali para as esquisitices, aguava as plantas, alvejava as roupas, arrenegando sem reclamar da lambança do chiqueiro. Os dois nunca brigavam. Entendiam-se bem nos senões e nos sinsins, ele às vezes sentia as dores na pernas que ela dizia sentir. Regradamente felizes, ela às vezes até adivinhava o pensamento dele, e ele por sua vez, valorizava os regalos dela, reconsiderava seus mimos, agradecia, penhorado. Ambos tinham lá seus negaceios, de vez em quando. Ele volteiava nos arredores, cismando aqui e ali com qualquer dê cá esta palha. Ela chamava a alma de longe, embevecida em antigos olhares de outros climas. E ele? Para continuar gostando dela, ele tinha que gostar de outras, para associar no íntimo as imagens. Elvira, por exemplo, deitava na cama de seus desejos, acotovelava na janela de suas fantasias, voava nos ares livres de seu Pasto da Fontinha. Se gostava mais de uma que de outra, não sabia, apenas penitenciava, prelibando o próximo e custoso pecado. Na verdade sentia-se meio nefasto, às vezes, duvidoso da própria saúde sentimental. Dissipava as brumas do peito, feitorando o gado no pasto, o sossego dos pássaros nas árvores, a bizarria dos animais domésticos nos terreiros da casa ao pé do morro. Buscava as vacas de tarde, tirava o leite de manhã, capinava o quintal na volta do dia. Disso gostava. E gostava também de se aprofundar nas terras além das de sua propriedade, sumia até de si mesmo na rala vegetação das lobeiras e alecrins e quando recobrava a lucidez, estava no meio da capoeira, espantando as juritis e os nhambus. Jogava o pensamento para bem longe e colhia a temperada audição das melodias brejeiras, tudo se concatenando nas ondulações parecidas com a de um mar plantado muito além das serras e dos horizontes. E cogitava se o mar também seria assim: quebrado em ritmos contraditórios? Deixava pra lá o pensamento, atalhava a vereda, acompanhando o regato para duetar o sabiá. E assim acontecia de perder a enxada ou a foice na beira dos caminhos e, com as mãos abanando, colhia uma flor do mato para levar à Cedalina, tão precisada de carinho, ao entardecer. Ela, a síntese de todas as mulheres de sua idade e de sua região, já vivia sem o assédio dos desejos agora tão murchos como os galhos decepados da roseira. Um dia Elvira fugiu com o padre. Serafim se abalou, mortificou, execrou os ritos de passagem, os autos das pastorinhas, as ladainhas da quaresma. Caiu nas cinzas do próprio fogo, estirou os braços no vazio. Descorçoado nos preâmbulos da senilidade, passou a descuidar-se do corpo, a barba como anoitecia amanhecia no rosto inerme, deixou de ir à Venda do arraial prosear com os amigos, fazia de conta que não via as pessoas, para não ter que cumprimentá-las. Às vezes nervoso e excitado entrava no brejo até onde o lodo visgava, uma força estranha o impelia ao atoleiro, outra, condolente, o devolvia à beira dos joás e dos ananases. Suava o espírito, tirava o chapéu desgastado, ouvia gritos e gemidos atrás do pombeiro, via um arco vermelho no alto do jatobá. Expurgava a má idéia, uma atrás da outra, velejava às escâncaras, queimando por dentro até não mais poder. Elvira cresceu na sua cabeça depois que fugiu, virou paixão de retrato e moldura. O marido dela sumira antes, quando ela se embengara com o toureiro itinerante. Logo o toureiro também foi pros confins, ela ficou sozinha e abandonada por deus e todo-o-mundo, sem choro de filho, sem xingatório de mãe, em dupla viuvez até que começou a receber os homens mais ou menos endinheirados, entre eles o nosso Serafim, que, trigueiro como era, conseguiu domá-la um pouco nos atrevidos anseios, ele veloz no olhar, manhoso nos gestos e palavras, nos disparates e comedimentos. Ela ficou algum tempo por conta dele, até que surgiu no Arraial o padre com os molambos teológicos, os olhares doídos e condoídos, a humildade às vezes áspera, às vezes apenas canônica. Ela caiu na armadilha devocional dos retiros nas luzes e escuridões da sacristia e da casa paroquial, nos ritos e orações das hosanas nas alturas. Quando viu, estava plenamente sacrílega, arrumou a sacola e acompanhou o pároco no escuro da madrugadinha, toda emaranhada de anjos barrocos. O nosso Serafim ficou a ver navios na longidão dos dias sem auroras, sem poentes e sem luares. Desafiava a quietude das horas, esgrimia as obsessões e ranzinzas, piolhava a cabeça, esbandalhava as pernas de tanto amassar barro na mesma aguada, de tanto desandar nas opções agora tão restritas do mesmo pasto de sempre. Sofria de uma paixão, a mais particular possível, pois a beleza de Elvira, também dele tão particular, ia e voltava nos êxitos e revezes pensamentais, uma beleza que tampava o sol, abria os esgotos do chão, esburacava o ar, estava em toda parte, como um pesadelo.Ora pois. A própria fontinha passou a cantar em suas águas tão cristalinas a história triste de uma praieira que um dia perdeu seu lindo jangadeiro de olhos da cor verde do mar. Às vezes via em Cedalina o rosto de Elvira, alegre como se não fosse de uma ingrata. Pensava em sumir nas matas como quem some nos mares do oceano. Precisava cansar as pernas, desafogar-se das mágoas. Um dia, quando o sabiá começou a cantar no pé de laranjas, ele desapareceu na imensidão das vagas vegetais de seu pequeno mundo, e nunca mais foi encontrado. Não foi à procura de Elvira, como muitos acreditavam, não queria revê-la nem fantasiada de anjo. Ele seguiu indefinidamente nos escassos caminhos, perdido de si, perdido do mundo e da vida, só isso que aconteceu. Quando ele foi embora, Cedalina amarrava os cabelos, cheirava o sumo das couves, nem ligava o som de matraca da acauã no teto do telhado de sua casa. O sino da igreja tocava o sussurro das cores na direção do negrume atropelado pela melancolia. Ela passou a ser a melancolia em pessoa que subia o morro da igreja, para ver o céu por alguns momentos de alívio e de contemporização. O próprio céu descia quando ela sentava no alpendre para ver e cumprimentar a comadre Alvarina passar no caminho do Areião, rumo à tronqueira que leva ao soturno e pavoroso Buracão do lado oposto ao do Pasto da fontinha que agora, desnecessariamente, era dela e de mais ninguém. Alisava o gato, fixava a barra horizontal esmaecida, espreguiçava pensativamente sobre a esteira vegetal dos valos, recompunha os movimentos do homem, revia-o na sombra do esporão, apartando as vacas dos bezerros. Às vezes cochilava e até dormia, sentada no banco de madeira, recostada na parede do alpendre. Envelhecia a passos largos e quem a visse de perfil sentiria uma pontada no coração, tal era agora sua aparência desleixada, descarnada, de olhos cavados, um futuro esqueleto já despontando na reles carnação. Quem a visse, mesmo de longe, no desuso e no arcaísmo, podia até suspirar e exclamar: o que é a vida senão o lento passar de um dia para o outro? Num outro dia fixava a porteira da entrada do Pasto, e não via a veículo de seu lindo jangadeiro, nem uma resteazinha do olhar lindo e traiçoeiro, que tanto mentiu-lhe a vida inteira. Assim desgrenhava e recobrava, cantava baixinho para ver se em breve escurecia, se a tarde trazia a hora feliz do regressar dele, bem na hora do jantar já posto à mesa da cozinha. Debalde, tudo debalde. Não mais voltou o seu veleiro, não mais o viu sobre o mar. Aquele olhar lindo e traiçoeiro nunca mais buscou o seu olhar. 

(*) Publicado no jornal AQUI PRA NÓS (Divinópolis, MG), em 1989, com o título de “História Triste de Uma Praieira”.