sábado, novembro 18, 2006

LER E ESCREVER, E VICE-VERSA (*)

A arte de escrever começa com o hábito da leitura. O leitor vai selecionando o gênero das publicações, os nomes dos autores, e assim, aos poucos, passa a participar da literatura. Como leitor, ele ilumina e dá vida ao material inerte saído da tipografia. Essa participação (relação leitor/autor) é que pereniza a literatura. Todo autor nasce do leitor. Para escrever bem é preciso, antes de mais nada, saber ler bem. O que mais atrai o autor acaba sendo, naturalmente, o que mais prende a atenção do leitor. É o mistério da vida. É natural que o homem deseje conhecer a si mesmo antes de conhecer outros homens e o mundo. Mas cada homem é diferente e o desejo de ser igual é que o obriga a lançar pontes entre o eu e o não-eu, pontes flexíveis, condutoras do conhecimento que às vezes confunde, mas que sempre enriquece. A inquietação existencial é que liga e distribui toda a fonte de energia. Se nos entregamos ao ócio e ao conformismo, a gordura toma conta de nosso sangue e de nosso cérebro. Podemos até ser felizes, mais estaremos mais perto da morte do que da vida. Cada pessoa tem sua vocação, cada autor tem sua tendência. Ninguém nasce nem vive sozinho. Tem a família, os amigos, a sociedade. A literatura – disse um poeta inglês – é o local de encontro de duas almas. O autor, como o leitor, é uma pessoa envolvida, tem lá sua rede de relações humanas. Quando trabalha não faz mais do que tentar filtrar as coisas que aprendeu com os outros, acrescentando sua contribuição pessoal, que é um desdobramento do já conhecido. Assim – espera-se –é que se dilata para a humanidade o campo do conhecimento, que é inesgotável justamente porque a vida é um mistério. Sem o livro – pode-se dizer, parafraseando conhecida proposição – o homem até que poderia ter saído da caverna, mas estaria sempre voltando a ela. Este livro – “Aço Frio de Um Punhal” -, que acabo de lançar pela Editora Guanabara, do Rio, é uma tentativa de exprimir minha inquietação existencial, meu envolvimento social nos tempos e lugares de minha vida. É uma resposta, tímida e certamente irrelevante, de minha perplexidade diante da realidade, um esforço literário não apenas de exprimir a realidade, mas também de recriá-la e de humanizá-la. Digo assim porque a literatura, sendo arte, como a pintura e a música, não se restringe (como a ciência) apenas na revelação da verdade. Ela não se contém, extravasa aqui e ali e acolá, em todos os poros, tornando-se um valor ainda indefinido, como que acima do bem e do mal, que ainda não foi inserido passivamente na tábua dos valores convencionais. Tentei penetrar no território que julgava conhecer (que eu conhecia não-literariamente), que é o interior de Minas Gerais, um Estado (esse universo mineireiro das tradições e do vanguardismo, da saúde e da doença, do transitório e do permanente) que é um verdadeiro País. Percorri muitos caminhos, em todas as direções, com as imperfeições de pernas e olhos, e voltei com este livro, que é, talvez, um balaio de gatos ou uma cesta de frutas (imaturas ou passadas do ponto?). É uma espécie de estudo literário da existência, não da minha existência, necessariamente, mas sim da do homem mineiro, tal como a pude vislumbrar e exprimir, esforçando-me no sentido de purgar um pouco minha angústia, extraindo dela algo de belo e veraz, para assim repartir, mesmo canhestramente, com os meus semelhantes. 

(*) – Posfácio não publicado no livro supracitado, em 1986.