quinta-feira, novembro 16, 2006

MEL E VENENO (*) - Poemas Revisados

1 – Temporada na Roça. 

A tarde é ampla e aberta. O sol, 
que espalhara marimbondos no pasto, 
recolhe os ferrões. Na mata, 
o machado que decepava cabeça, 
tronco e membros, 
esfria seu gume. 

O gado beira o curral. Três estacas 
no brejo acolhem a tristeza do jeca: 
uma palavra ao nível dos moirões,
grita-me ao longo do crepúsculo verde. 

Angustia é a palavra que eu trouxe da cidade.
Agora a posse da dor, 
Quase da morte, 
Pelo amor dos homens. 


2 – Poema Espírita. 

Se ainda estamos neste baixo astral, 
amassando o barro, expiando as culpas, 
pagando os pecados, é porque não somos 
flor que se cheire. 

Somos o ranzinza caído e pisoteado, 
somos o torpe vencedor nas inglórias
a tripudiar sobre os vencidos.
Por bem podem me levar ao inferno, dizemos,
Por mal, nem aos céus.

O vento que sacode as árvores do quintal, 
devem ser dos obsessores espirituais, 
oprimindo e alertando, 
afirmando que a morte não existe, 
que há um tempo retrógrado.

Queremos chorar no ombro de alguém, que nos fala
Do amor entre os homens e do nascer de novo.
O dia se alonga no envoltório de gases densos, 
e abafa o que Deus tenta nos dizer. 

3 - Fruta de Jacarandá. 

Já vai longe o tempo, na Picada de Goiás, 
em que os bandeirantes e os garimpeiros 
levavam para os filhos os doces, 
as doces frutas de jacarandá. 

Também nos primórdios do século, 
os campos eram pródigos e belos. 
Os lavradores ainda perguntavam: 
“Pitangas? Goiabas? Mamacadelas?” 
E as crianças respondiam: 
“Queremos as frutas de jacarandá!” 

Só hoje impera a lei da desordem. 
Nos porões palacianos, os inquisidores 
de pássaros, os caçadores de cabeças, 
os predadores do corpo e da alma. 

Não há mais cristão que aguente
o preço das coisas, o genocídio infantil, 
as ciladas nas esquinas e escritórios, 
o crime que se organiza, minuciosamente, 
nos gabinetes dos pançudos perdulários. 

Não há cristão que aguente 
nem mesmo a ausência do bom do lobo no capão 
que rodeava a fontinha daqueles tempos, 
a falta que faz o tatu na beira dos caminhos, 
que hoje nos levam penosamente à velha igrejinha do outeiro. 

4 - Graças a Deus. 

Graças a Deus a rolinha ainda debulha 
o tédio da tarde, diluindo-o. 
É sempre um pássaro, uma folha 
livre do êxtase contemplativo. 

Graças a Deus a folha não se assusta 
com a barbaridade do homem. 
É feliz porque um dia será flor 
se já não for. 

Graças a Deus a natureza é razoável. 
Um jardim brilha no cosmos 
(enquanto não levamos para o inferno 
as prerrogativas da simplicidade 
no rol das complicações. 


5 -  Mel e Veneno. 

Aurora ainda enluarada 

manava dos seios da mulher. 

O líquido colorido esguinchava 

da pressão arterial. 


Mel e veneno minavam aqui e ali. 

Vi nuvens inventando cores, 

e sapos de cócoras no adro da igreja. 


Subi às torres e perguntei

Desci aos vales e perguntei: 

com quem dicutirei minha loucura? 


Resposta nenhuma veio de nenhum dos lados de minha pessoa.


6 - A Chuva 

Ela agora (depois de prover-se na lagoa) 
recompõe nossas células, refresca 
nossa chama mórbida (a tensão defensiva?). 

Os patos ficam mais alvos, 
um bambu canta na moita 
(a manga amadurece de repente?). 

Ela agora reúne as fases do tempo, 
malha o nosso coração de ferro, 
umedece as estruturas metálicas, 
lava o ar e o chão e a moral 
da cidade que nos apodrece. 

Sem resíduos e aderências, 
ela está vindo de outro século, 
molha a horta de couve do quintal, 
a roça de milho na volta do brejo, 
os cabelos sem cabeça do jacanabunda. 

Depois regressa ao mar das lonjuras, 
e assim aos poucos no-la esqueceremos. 

7 - Antiga Marilândia. 

Numa noite estival de um novembro, 
a respiração da terra era tão sensível 
a todos que se aproximassem dela 
(dessa noite sozinha na vida e no mundo). 

A terra se emocionava? E nós, filhos mórbidos 
em seu ventre,
colhíamos espigas e estrelas 
naquele ar crivado de raízes. 

Era uma noite de Deus e dos anjos. 
O coração partido partia a alma em pedaços. 
E os grilos vibravam, agudíssimos, no alpendre. 

Tudo que vive se manifesta 
nos resíduos da origem.
Quando apurei os sentidos, sonhei. 
Sonhei, mas era verdade. 

8 - O Lavrador. 

Ele deposita as rugas na cômoda posição 
do sono inverso, em verso. 
Depois apalpa o sonho. 
E quando se retira do leito, o rio finda. 

No lugar do rio, 
ele espalha ramas de feijão e arroz, 
para o sol e o paiol
ajeitando lá suas técnicas de subsistência. 

De vez em quando, 
o sabiá canta a seu redor. 
De vez em quando, 
ele atravessa o estado de nervos 
e desata algumas veias da paixão. 

De vez em quando, o tronco de sucupira 
deixa o galho ar 
e vai ao poço tomar um pouco de água. 
Isso de vez em quando. 


9  - Profunda Sombra. 

Nenhuma estrela recorda à treva 
que seu reinado é trapaceiro. 
Aqui e ali estala em tudo 
a profunda sombra 
abrangente natureza da noite 
de fundo azul em superfície negra. 

10 - Ideia Fixa

Acordo atravessado na cama de solteiro,

Sufocado no clima emocional

Das ideias fixas,

Do crescente desejo de comer

As ex-mulheres peregrinamente lindas de Pedro Nava.

 

Doces pulposas bivalvas aveludadas

As que esverdeiam as primaveras

Das peremptórias fascinações.

 

Recomponho-me.

Finalmente aceitando que elas são as mesmas de sempre

Tenha um nome outro

Um corpo mais agudo ou mais grave

Elas e elas e elas.

 

Fico na exata posição de um morto

Vendo chover as imagens das amadas.

Todas se resumem na mesma de sempre:

A metade da cara de minha pessoa.

 

O amor próprio, desdobrado,

Nas variedades formais do belo prazer? 




(*) Alguns poemas revisados do livro publicado em 1984.