MEL E VENENO (*) - Poemas Revisados
1 – Temporada na Roça.
A tarde é ampla e aberta. O sol,
que espalhara marimbondos no pasto,
recolhe os ferrões. Na mata,
o machado que decepava cabeça,
tronco
e membros,
esfria seu gume.
O gado beira o curral. Três estacas
no brejo acolhem a tristeza do jeca:
uma palavra ao nível dos moirões,
grita-me ao longo do crepúsculo verde.
Angustia é a palavra que eu trouxe da cidade.
Agora a posse da dor,
Quase da morte,
Pelo amor dos homens.
2 – Poema Espírita.
Se ainda estamos neste baixo astral,
amassando o barro, expiando as culpas,
pagando os pecados, é porque não somos
flor que se cheire.
Somos o ranzinza caído e pisoteado,
somos o torpe vencedor nas inglórias
a tripudiar sobre os vencidos.
Por bem podem me levar ao inferno, dizemos,
Por mal, nem aos céus.
O vento que sacode as árvores do quintal,
devem ser dos obsessores espirituais,
oprimindo e alertando,
afirmando que a morte não existe,
que há um tempo retrógrado.
Queremos chorar no ombro de alguém, que nos fala
Do amor entre os homens e do nascer de novo.
O dia se alonga no envoltório de gases densos,
e abafa o que Deus tenta nos dizer.
3 - Fruta de Jacarandá.
Já vai longe o tempo, na Picada de Goiás,
em que os bandeirantes e os garimpeiros
levavam para os filhos os doces,
as doces frutas de jacarandá.
Também nos primórdios do século,
os campos eram pródigos e belos.
Os lavradores ainda perguntavam:
“Pitangas? Goiabas? Mamacadelas?”
E as crianças respondiam:
“Queremos as frutas de jacarandá!”
Só hoje impera a lei da desordem.
Nos porões palacianos, os inquisidores
de pássaros, os caçadores de cabeças,
os predadores do corpo e da alma.
Não há mais cristão que aguente
o preço das coisas, o genocídio infantil,
as ciladas nas esquinas e escritórios,
o crime que se organiza, minuciosamente,
nos gabinetes dos pançudos perdulários.
Não há cristão que aguente
nem mesmo
a ausência do bom do lobo no capão
que rodeava a fontinha daqueles tempos,
a falta que faz o tatu na beira dos caminhos,
que hoje nos levam penosamente
à velha igrejinha do outeiro.
4 - Graças a Deus.
Graças a Deus a rolinha ainda debulha
o tédio da tarde, diluindo-o.
É sempre um pássaro, uma folha
livre do êxtase contemplativo.
Graças a Deus a folha não se assusta
com a barbaridade do homem.
É feliz porque um dia será flor
se já não for.
Graças a Deus a natureza é razoável.
Um jardim brilha no cosmos
(enquanto não levamos para o inferno
as prerrogativas da simplicidade
no rol
das complicações.
5 - Mel e Veneno.
Aurora ainda enluarada
manava dos seios da mulher.
O líquido colorido esguinchava
da pressão arterial.
Mel e veneno minavam aqui e ali.
Vi nuvens inventando cores,
e sapos de cócoras no adro da igreja.
Subi às torres e perguntei
Desci aos vales e perguntei:
com quem dicutirei minha loucura?
Resposta nenhuma veio de nenhum dos lados de minha pessoa.
6 - A Chuva
Ela agora (depois de prover-se na lagoa)
recompõe nossas células, refresca
nossa chama mórbida (a tensão defensiva?).
Os patos ficam mais alvos,
um bambu canta na moita
(a manga amadurece de repente?).
Ela agora reúne as fases do tempo,
malha o nosso coração de ferro,
umedece as estruturas metálicas,
lava o ar e o chão e a moral
da cidade que nos apodrece.
Sem resíduos e aderências,
ela está vindo de outro século,
molha a horta de couve do quintal,
a roça de milho na volta do brejo,
os cabelos sem cabeça do jacanabunda.
Depois regressa ao mar das lonjuras,
e assim aos poucos no-la esqueceremos.
7 - Antiga Marilândia.
Numa noite estival de um novembro,
a respiração da terra era tão sensível
a todos que se aproximassem dela
(dessa noite sozinha na vida e no mundo).
A terra se emocionava? E nós, filhos
mórbidos
em seu ventre,
colhíamos espigas e estrelas
naquele ar crivado de raízes.
Era uma noite de Deus e dos anjos.
O coração partido partia a alma em pedaços.
E os grilos vibravam, agudíssimos, no alpendre.
Tudo que vive se manifesta
nos resíduos da origem.
Quando apurei os sentidos, sonhei.
Sonhei, mas era verdade.
8 - O Lavrador.
Ele deposita as rugas na cômoda posição
do sono inverso, em verso.
Depois apalpa o sonho.
E quando se retira do leito,
o rio finda.
No lugar do rio,
ele espalha ramas de feijão e arroz,
para o sol e o paiol
ajeitando lá suas técnicas de subsistência.
De vez em quando,
o sabiá canta a seu redor.
De vez em quando,
ele atravessa o estado de nervos
e desata algumas veias da paixão.
De vez em quando,
o tronco de sucupira
deixa o galho ar
e vai ao poço tomar um pouco de água.
Isso de vez em quando.
9 - Profunda Sombra.
Nenhuma estrela recorda à treva
que seu reinado é trapaceiro.
Aqui e ali estala em tudo
a profunda sombra
abrangente natureza da noite
de fundo azul em superfície negra.
10 - Ideia Fixa
Acordo atravessado na cama de
solteiro,
Sufocado no clima emocional
Das ideias fixas,
Do crescente desejo de comer
As ex-mulheres peregrinamente
lindas de Pedro Nava.
Doces pulposas bivalvas aveludadas
As que esverdeiam as
primaveras
Das peremptórias fascinações.
Recomponho-me.
Finalmente aceitando que elas
são as mesmas de sempre
Tenha um nome outro
Um corpo mais agudo ou mais
grave
Elas e elas e elas.
Fico na exata posição de um
morto
Vendo chover as imagens das
amadas.
Todas se resumem na mesma de
sempre:
A metade da cara de minha
pessoa.
O amor próprio, desdobrado,
Nas variedades formais do belo prazer?
(*) Alguns poemas revisados do livro publicado em 1984.
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