sexta-feira, setembro 29, 2006

O JUBILEU DE CONGONHAS EM 1950 (*) - Conto

Os caminhos do tempo ferem mais, os morros de Congonhas cansavam, a cidade dos santos divinos e humanos, das igrejas e bitacas, a alegria de cada um é a alegria de todos! O cristianismo é mesmo um helenismo tristonhento? Quem se machucou não está aleijado, ainda não dividiu a personalidade! Os romeiros tinham acorrido de todos os rincões, tinham andado a pé a cavalo de caminhão, assaltados pelos terrores dos velhos pecados... as intenções movem as pernas e os braços... afrontaram as lonjuras os dissabores: os velhos no cerne da madeira de lei, os rapazes estróinas as moças ariscas, as mulheres de cabelos em coque, a trinca de roceiros lá de Saúde: - Modesto de Souza, Vicente Celestino, Sady Cabral: velhos amigos de meu falecido pai...: saudaram-me num dos passos da via-sacra... Não sei tapear os caipiras que me lembram os pios deboches da terra, os barrancos os arbustos as moitas dos caminhos. A seleção argentina tinha Vaca, Salomão e Sobreiro no trio final; a brasileira era constituída de Ari, Domingos e Norival...: o rádio gritava nas ruas de chagas e padiolas a epopéia dos impulsos e das flexões arrebatadoras...: as escapadas de Labruna e Pederneiras no rumo da pequena área as gingas e os petardos de Zizinho e Ademir na entrada da pequena área.... Vendíamos comida cigarros doces e bebidas: uma doméstica local cozinhava na área cimentada, bem rente às grades laterais da cadeia pública, bem nos olhos e nos narizes dos detentos: era assim mesmo que acontecia o desalento, qualquer desgraça acontece muito antes: só o parvo não percebe o aviso-prévio! O que adere e não remete, sucumbe.... No terceiro dia do Jubileu a carne estragou, mas o patrão tacou sal nela à vontade, garantiu que não faria mal a quem tivesse fome: era só servir com um gole de pinga amarga... As janelas fechadas matavam as casas, a sombra autônoma, sem luz, sem refletor...: puta merda! O patrão enrolou os caipiras das quinze bandas: “esse povo da roça come até estanho derretido”, ele disse...: um deles, de bunda baixa, devorou a carne até do prato dos companheiros, teimava com eles que o gosto diferente era a delícia do tempero! Ah esse Modesto de Souza agarrava o cabo da enxada no milharal, a cantar: “um dois três quatro cinco seis sete oito nove, para doze só faltam três”, e aí um dos profetas do Aleijadinho respondia: “Ah minha machadinha, quem te pôs a mão sabendo que és minha?” O comércio estava fraco naquele ano: o ponto do nosso bar espantava os ressabiados... “Prefiro ver um cachorro cagando do que um homem de boné”, dizia lá do canto da parede o esquivo Sady Cabral.... Da cozinha víamos os olhos piedosos dos trancafiados: Libertad Lamarque no meio deles, violentada, chorava a cantar tangos e boleros de cabaré, o delegado Willian Bendix, manquitola cara de lua cheia, avermelhou o rosto dela com um tapa violento que me doeu enquanto lavava os copos usados! No quarto dia tive que sair às ruas e ladeiras, a vender o estoque encalhado dos refrigerantes: quando a boa sorte vai abrir os olhos na minha direção? Assim eu recolhia as suadas moedas dos pobres romeiros... O sopro de vida nas pedras do chão, a mínima elegia dos dias azarados, o heroísmo da segunda sufocado na terça-feira, a terra de ninguém na bandeja abstrata.... Tempos bicudos ( o patrão disse), o jeito é sumir antes que o fiscal retorne com as multas.... Os profetas também eram peregrinos, coçavam os temas instigantes nas peles rugosas, compadeciam das divindades impotentes: e eu? não recebia nenhuma das bênçãos? Humilde e ajoelhado, é assim que se bebe da fonte sagrada? Na casa dos milagres o que é vivo rodeia, ampliando.... A tradição é um repertório de paradigmas, lá diz o medievalista Zunther... A cidade escorregava no sol das vertentes. No quinto dia encaixotamos as coisas, fechamos o cômodo, pegamos o Noturno para Belo Horizonte. O patrão a dizer que a luta para ganhar a vida, educar os filhos e fazer o pé de meia, é a mesma desde a expulsão do paraíso! Estava de novo no balanceio do tem de ferro. Valeu a pena resvalar o cotovelo nos seios de Stela Stevens, bem na sacristia, depois da missa! O conhecimento aprofunda o mistério das coisas, o resvalar na macieza do seio é algo transcendental! Belo Horizonte não era a pérola de feição irregular: era a borboleta das montanhas, o seixo voador do Ribeirão do Carmo, a forma que dissolve e se refaz, o tempo que segue na esteira, mutante, a cerca aérea ventilada de renques, os andares nos vales e nos picos.... Sim!, concordo plenamente: Dóris Day prescinde da rosa cantante da língua, que beija os próprios lábios.... Primeiro a flama, depois a lassidão as estações do amor, íntimas peles os infindáveis vermelhos de dentro -as palavras interromperam-me os passos do pensamento dúbio? Para onde ele foi, sorrateiro: de onde as palavras vieram? Afinal de contas eu estava fazendo meus primeiros dezesseis anos de idade. 

(*) Excerto excluído do romance em versos “POR QUE CHORAS, SAXOFONE?”, ainda inédito.