sábado, março 17, 2007

AS CAPIVARAS DO RIO ITAPECERICA

Sou de um lugar (Marilândia) e de um tempo (década de 40) que não existem mais, a não ser em fotografias nos álbuns e paredes, como diria Carlos Drummond de Andrade. Naquela ao mesmo tempo aquarela e quadra inesquecível, repleta de auspícios e regalias, a gente testemunhava a exuberância da vida natural ofertando mais interesse e proveito, mais saúde e alegria do que a exuberância da vida artificial de nossos dias. A fartura das águas pluviais e fluviais: as chuvas de todos os tamanhos, de tantas ressonâncias, lambanças, enxurradas, germinação e floração dos vegetais, tantas goteiras e enchentes e vazantes nos córregos e rios, cachoeiras e lagoas; os rios jogando suas águas de barranco a barranco e, às vezes, seus peixes longe do leito. Quando penso na mudança ocorrida, comparo as conquistas humanas com as perdas, ou seja, do surto do chamado progresso com o desfalque dos bens subtraídos à natureza, constato que não há mais o equilíbrio contábil entre as perdas e as conquistas. Creio que um estudo mais aprofundado e não um texto ligeiro como este, pode levantar, discutir e esclarecer o atual desequilíbrio nos termos da rentabilidade humanística e não meramente financeira –pragmática. Temos hoje a televisão de toda noite e não mais as estrelas e o luar e as estórias que se contavam na beira do fogo; temos os mantimentos, verduras e frutas dos ceasas metropolitanos e não mais os da comida caseira, colhidos nas roças e nos quintais. Naquele tempo as águas correntes (e mesmo as aparentemente paradas dos remansos e lagoas) hospedavam as submersas manadas de traíras, timburés, bagres, mandis, carás, piabas e também os jacarés e aves aquáticas e nos arredores as capivaras (pequenos hipopótamos?) e as pacas, além das lendas e as alusões de tanta sacralidade. Os campos e matas abrigavam os lobos e as jaguatiricas, os coelhos e tatus, os gatos e cachorros do mato, os macacos e tamanduás, os micos e os piriás, as cotias e os gambás, os ouriço-caixeiros e as cobras (cascavel, jararaca, urutu, jaracuçu, a de vidro, e tantas outras de variadas cores e feições e peçonhas e belezas), e também a múltipla revoada da passarada: do inhambu às rolinhas, da acauã ao papa-capim, da juriti à saracura, do sanhaço ao bentivi, do sabiá ao pássaro-preto, do joão-de-barro ao curió, do canarinho ao pintassilgo, do tico-tico ao papagaio, da maitaca ao periquito, do gavião ao urubu, da ema à siriema, sem falar na extensa fileira dos animais mais domesticados: jumento, marruás, boi, vaca, mula, égua, gato, cão, pato, galinha, marreco, peru, porco, bode, carneiro..., tudo isso sem falar nos bichinhos voantes e cantantes, zangantes e reluzentes como os vagalumes, as cigarras, as aranhas, as abelhas, os marimbondos, os sapos e rãs, as pererecas e lagartos e tiús e as minhocas e os minhocuçus, sem falar nos mosquitos e carrapatos, nos cipós e espinhos, nas flores e frutas em suas estações generosas e infalíveis. Para minguar e quase exterminar tanta prodigalidade natural nos quadrantes do Distrito, a chegada do fatídico progresso da modernização regional ,através da viação férrea atravessando o Centro do Estado, trouxe de outras plagas para Divinópolis cerca de mil famílias de ferroviários para desenvolver a nucleação urbana e desarticular a vida rural em suas variantes de uma até então virginal biodiversidade. Os adventícios chegaram e tomaram conta do pedaço, como se diz, principalmente depois de perceberem o potencial alimentício das paragens circundantes. Em vez de irem ao comércio comprar os víveres, eles iam aos bandos com seus facões e espingardas exercitarem suas habilidades nas artes de caça e pesca, matando sem dó nem piedade tudo que, vivo, surgia ao longo de suas andanças recreativas de fins de semanas. Assim teve início a sanha predatória no chão, nas árvores, nos ares e nas águas de toda a região, mormente nas quinze bandas de Marilândia, arraial munido de uma estrutura propiciada em forma de vendas, moradias, estação da estrada de ferro, moças bonitas e pessoas que bisonhamente não viam nenhum perigo na criminosa invasão dos domínios até então naturais e bem sortidos de vida mineral, vegetal e animal. Invasão que durou anos de matança indiscriminada, num torpe esporte que chegou ao ponto de esvaziar um belo universo de vida até então cantante e fagueira, transformando o prodigioso rincão numa penúria desértica de campos pelados, restingas e outras paragens sáfaras que, mesmo com o passar dos anos, não se refaz, não se refaz. Mas estamos aqui para falar dos apáticos e tranqüilos seres que dão título ao nosso brejeiro texto: as capivaras do Rio Itapecerica. Os remanescentes da espécie, depois da relutância de muitos anos, resolveram acompanhar os roceiros no êxodo rural, beirando o rio, longamente, até acomodarem-se no fundo dos quintais das casas marginais ao longo do curso fluvial. A chegada delas causou espanto nos moradores, que logo se encantaram com a doçura delas, na insólita e repentina companhia delas, mesmo ali, quase ao alcance das mãos até que enfim um tanto civilizadas, lembrando-me do dito popular que define o mineiro como o cara cabeçudo que, não podendo livrar-se de um desafeto, convida-o para ser seu compadre. Assim elas, para se livrarem do homem-caçador lá nos confins da roça, vieram viver no fundo do quintal deles, placidamente, e assim por obra da misericórdia divina, cativando a população com toda a simpatia de sua natural mansuetude. Foram chegando às apalpadelas, ressabiadas (cheguei a contar um dia, ali do calçadão do Porto Velho, um lote de 13 delas, do outro lado do rio), fuçando e pastando na vegetação das coivaras, juncos, capins e moitas de cipós, no meio podre do lixo urbano jogado e sedimentado nas margens fétidas e nojentas do rio. Os moradores ribeirinhos abismavam-se na estranheza de um espetáculo tão naturalmente encenado logo ali nos fundos do centro da cidade, perto de uma siderurgia barulhenta e fumacenta, nas margens deturpadas de um rio que virou uma cloaca, ali mesmo pertinho do leito de uma ferrovia oleosa e trepidante. Muita gente até duvidava: capivaras?! Como é que pode? Afinal que bicho é esse? Procurei saber e constatei que são grandes mamíferos roedores, representantes das famílias das hidroquéridas, seres silvestres, de vida metade aquática e metade terrestre, comedeiros de víveres específicos das várzeas e matas ciliares, criados e sazonados de conformidade com o húmus e o oxigênio do meio-ambiente agreste e fluvial. Mas como podem estar aqui no lodaçal amanteigado das sucessivas descargas dos esgotos de dezenas, centenas de milhares de residências e escritórios e fábricas? Há mais de um ano que o pessoal das caminhadas do calçadão do Porto Velho (as pessoas que fazem caminhadas são, geralmente, mais conscientes da cidadania de todo ser humano que se preza) admiram e fazem (acredito) mentalmente uma genuflexão em respeito ao que parece uma pacífica convivência entre seres silvestres e urbanos. De vez em quando algum maroto ainda dá seu palpite infeliz, contemplando-as: “aquilo ali numa panela, hein?”, e outro caminhante mentalmente responde: “e você atrás das grades, vendo o sol nascer quadrado, hein?”