AMOR E DOR EM MANUEL MARIA DE BOCAGE
Só mesmo em São Paulo, no Sebo do Messias (Praça da Catedral da Sé), que eu poderia encontrar a raridade que é o livro “Poesia de Bocage”, edição de 1950, da Livraria Sá da Costa, Lisboa. Eu sabia pouco do lado poético do Bocage e muito do humorístico (mais lendário que verídico), responsável por gostosas gargalhadas de muita gente até os dias de hoje. São piadas geralmente personificadas pelo rei, a rainha e ele, com as suas trapalhadas. Uma vez seu cavalinho baio sumiu e ele cansou de procurar nas quinze bandas das redondezas, quando então subiu nas grimpas da árvore mais alta para avistar mais longe. Nisso o rei e a rainha, ambos cavalgando, apearam-se na sombra da árvore, para refestelarem um pouco. A rainha mais que depressa suspendeu a longa saia rodada para urinar, e o rei, embevecido, suspirou e disse, diante da sedutora provocação: “Ah, desta vez vi o mundo todo!” Ao ouvir, lá de cima, a exclamação, Bocage prontamente interferiu, em voz alta: “E o senhor por acaso não viu onde está escondido meu cavalinho baio?” Piadas à parte, na verdade sua fama de poeta satírico só é sobrepujada pela de poeta romântico, cantor e joguete das mulheres inspiradoras da rima que para ele se resumia no díptico: amor/dor. O soneto da página 33 é uma verdadeira canção de viúvo: “Deploro, caro amigo, o que deploras Como porfiosa dor, com dor interna; perdeste a doce esposa, a sócia terna, que presente adoraste, e longe adoras. Mas pensa, quando gemes, quando choras, que por alto poder, que nos governa, ela habita do bem na estância eterna, e na estância do mal tu inda moras. Revê no coração, na fantasia a índole gentil, suave pura com que menos que o céu não merecia. Olha gozando a cinza escura; do corpo em que brilhava uma alma pia, é quase, é quase altar e sepultura!” Ele sabia animar e petrificar, ora suscitando as convulsões do raio, ora pateticamente agitando e comovendo: é o que diz dele Lord Beckford, que privou de sua convivência e para quem ele era “a criatura mais extravagante e mais original que Deus deitou no mundo”. A mente popular fixou-o como um tipo de rua, uma espécie de bobo, chocaneiro, vergonhoso: Olavo Bilac revolta-se contra tal fato e logo outros intelectuais o seguiram. Mas “é verdade que malbaratava seu talento devido a seu esfuziante improviso de chistes”, diz Guerreiro Murta, no prefácio. Artífice do verso, banhado em luz de vários climas, a rir da pompa das estátuas: “para os coevos fostes o turbulento”, festeja-o num soneto o arguto e sóbrio Felinto de Almeida. “Ó amor detém a foice da morte!”, ele rogava, pois para matar o poeta. “bastam seus furores” (os furores lá dele, Bocage). A lânguida ternura da doce amada cativa-o, mas nunca o faz mais ditoso. Sua poesia é uma súmula descritiva-narrativa de seu calvário romântico: os copiosos sonetos mencionam à exaustão e intensamente os ingredientes que mais afloram à sensibilidade predisposta: a ingratidão, o ciúme, a discórdia, a mordacidade, a morte, o desengano, a saudade, a solidão, a lágrima, a desventura, o desespero, todos os presságios, as dores e os ressentimentos que acompanham o amor no débil, instável coração do poeta aluado, absorvido de tal maneira pelas reclamações da alma e do corpo (fortuna e ônus da sexualidade embutida e reprimida), que ao leitor atento só resta constatar que de tanto amar e sofrer, ele nem tinha tempo para viver, fazer e recuperar o que perdia constantemente, sofrendo. Era na vida prática um galanteador barato, mais vítima do que algoz? Amava todas as mulheres e por isso não podia ser amado fielmente por nenhuma delas? (estou até propenso, na oportunidade, a glosar Fernando Pessoa e dizer que amar é preciso e que viver não é preciso). Ele amava ao sabor das circunstâncias – e assim vivia estrepado, golpeado pelas ciclópicas setas de Cupido. Original e extravagante, a extravasar os chistes dos improvisos, as espumas do sarcasmo, seu coração tudo sentia e exprimia. Bocage é desses poetas de tempo integral, totalmente assumido por honra da causa, pateticamente exposto ao declarar-se vassalo da musas, sempre a falar, pensar e escrever tão somente em versos, exímio equilibrista das cercanias do Olimpo e do Parnaso, instintivo ritmista da intimidade pública (se assim se pode dizer), rimando e metrificando qualquer assunto que para nós, simples mortais, não mereceria mais do que dois ou três dedos de prosa. Ele fala como se escrevesse e escreve como se falasse, diuturnamente versificando os sentimentos e os pensamentos em sonetos, idílios, odes, elegias, cantatas, cantos, canções, cançonetas, quadras e motes e glosas; epístolas, sátiras, epigramas e fábulas – a vida inteira amargando exílios e gorados amores. Que Deus o tenha.
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