ILAÇÕES DE LEITURA II
O Ego algemado de um lado pelo Id e do outro pelo Superego, não pode pular nenhuma cerca, só lhe resta imaginar, fantasiar, sonhar. Freud, junto de Marx e de Nietzsche abriram, segundo Ricoeur, três brechas teóricas para que a filosofia moderna respirasse mais livre e amplamente. As três, nas palavras de Marilene Valério Diniz: “A psicanálise, porque demonstrou que o discurso racional oculta o discurso do inconsciente, a fala sem disfarce que põe em evidência a verdade psíquica do sujeito. O marxismo, por demonstrar que muitas crenças, muitas situações e “verdades” dadas como absolutas e incontestáveis não passam de ideologias da classe dominante, construídas com o objetivo de manter seu domínio. E a filosofia de Nietzsche, que buscou restaurar a força do homem, sua capacidade de transformação constante e sua potência criadora”. Assim, em poucas palhetadas, a autora traduz o que o filósofo francês descortinou para tanta claridade de nós, estudiosos de tudo que nos afeta. Vemos que, assim, os três teóricos descartam conceitos até então considerados axiomáticos, substituindo-os por instaurações de conceitos momentaneamente polêmicos, preenchendo assim os vazios doutrinários das realidades dos novos tempos. Freud ao afirmar que as pessoas não são iguais: Marx a dizer que são; e Nietzsche a formular os possíveis aprimoramentos comportamentais do ser humano, com um entusiasmo mais repleto de exageros do que mesmo de heresias. A lingüística dos signos – a semiótica – e a lingüística dos sentidos – a semântica -: eis o desdobramento defendido por Ricoeur (pág.90), baseado numa teoria de Émile Benveniste, para defender que o discurso é um evento da linguagem. A interpretação crítica de um texto, seja do ramo documental ou do fictício, exige redobrada atenção para o excesso de significações, já que como referia T. S. Eliot, o bom texto literário, em prosa ou em verso, possui sempre vários níveis de significações. Sentimos, assim, ao ler os bons autores, o poder de raciocinar em bloco e o resultado de obtenções ciclópicas de seus trabalhos que afetam em sincronia os sentidos mais vulneráveis do leitor, mormente os fisiológicos (olfato, gustativo, libido, afetivo, repulsa, devaneio, recreativo), responsáveis pela sedimentação intelectual. O maior mérito da consecutiva escrita de Marilene é o de chegar ao leitor atraindo-o com os bons modos de uma oferta que é, ao mesmo tempo, uma solicitação. Assim o leitor participa do chamamento, com a sensação , por exemplo, de que um Jorge Amado não é mais o rotundo apelador ideológico, mas que se tornou repentinamente possuído da magnânima, deleitosa finura de um Machado de Assis. No terreno da arte nada é impossível. É assim que a filosofia pode oferecer uma leitura mais literária e instigante. Na página 94 ela diz que “não há dúvida de que o homem é um animal diferente dos outros animais por sua capacidade de representação”. E é assim mesmo, representando, que ele exorbita da igualdade, tornando-se às vezes melhor e às vezes pior do que os outros animais. Seus dons de manipular símbolos facultam-lhe o poder de romper limites e de transigir, bisbilhotando e pesquisando em todas as áreas do tempo e do espaço, valendo-se de armas e ferramentas materiais e imateriais, podendo ser visto no fundo do mar, no alto dos céus, no meio das matas, nos túneis do tempo, desempenhando uma maleabilidade interdita aos outros seres vivos. O mérito dessa faculdade humana vem sendo cantado em prosa e verso desde os tempos mais remotos. Mas creio que chegamos num ponto histórico da humanidade que esse mérito já está sendo questionado, tendo em vista o estado danificado, para não dizer doentio (quase agônico?) da vida planetária tão agredida pela predatória poluição, obra do engenho humano, agora assim considerado miseravelmente corrosivo e corruptor. Os elementos estruturais da escrita filosófica, nebulosos pela diversidade dos enfoques e do hermetismo acadêmicos, podem ser apresentados mais claramente discerníveis, como prova esse livro de Marilene Valério Diniz. Parece-me que ela parte do pressuposto de que o trabalho deve alcançar o leitor e que o leitor nem sempre está habilitado, em termos de paciência especulativa e de aptidão intelectual, para instintivamente amá-lo, assimilando-o. Assim, quando a linguagem específica da disquisição perde o ranço da preciosidade acadêmica, torna-se mais digerível e até mesmo familiar. É assim que a chamada cultura livresca pode, aos poucos, ser felizmente assimilada pelos diletantes da cultura geral, até então confinados nos quadrantes da chamada cultura popular, que é, em suma, a simplificação do que se consegue a duras penas através da sabedoria humana mais genérica e complexa. E é assim que, muitas vezes, a gente sente na linguagem caipira dos verdadeiros roceiros (ao vivo em qualquer nesga sertaneja ou nos livros de Guimarães Rosa) as ressonâncias verídicas dos postulados de Sócrates e de seus epígonos.
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