OS COMPOSITORES TAMBÉM SÃO SERES HUMANOS
Lamartine Babo morava em São Paulo e correspondia epistolarmente (que língua a nossa!) com uma fã da cidade sul-mineira de Boa Esperança. Carta para lá e carta para cá, a relação foi se intensificando afetuosamente. De tal maneira que lá num belo dia o Lamartine resolveu descer a Mantiqueira e aportar, sem aviso-prévio, na boa e bela Boa esperança. Sofreu terrível decepção ao constatar que a fã apaixonada não passava de um fã enrustido. Dando a volta por cima, ele regressou a São Paulo, escrevendo a bela canção “Serra da Boa Esperança”, no meio da qual surgem, airosamente, os versos: “levo na minha cantiga a imagem da Serra.../ Sei que Jesus não castiga um poeta que erra...”. E por falar em compositor, lembro-me da tirada verbal do Juca Chaves, referindo-se à cantora Wanderleia, da antiga Jovem Guarda (ela freqüentava, na década de 60 a cidade de Divinópolis, quando vivia aqui sua tia, esposa do Salim, do “Copo Limpo”): “Ela tem um rosto maravilhoso, quando está de costas”. O Ary Barroso era realmente folclórico na vida real – e exageradamente flamenguista. Uma vez irradiando (sim, ele era, também, locutor esportivo, de enorme audiência) uma partida entre Botafogo e Flamengo, ele, propositalmente, enfatizava os lances e os nomes dos jogadores rubronegros e depreciava os alvinegros. Mais ou menos assim: “Bola com Joel que entrega à Rubens e este à Dida, que deixa um par de zagueiros na saudade...”- assim ele ia narrando e não haveria nada de errado se não fosse o fato do placar estar apontando quatro a zero a favor do Botafogo. Pois é. Num lance assim de troca de nomes sai mais um gol do Botafogo. Aí o Ary quase perdeu a fala, gaguejou, gaguejou, até que encontrou a saída, exclamando contra a vontade e apaticamente o gol do time adversário, justificando: “É difícil acreditar no que aconteceu. Depois de uma saraivada de bolas do ataque rubronegro contra a meta botafoguense, o Quarentinha pegou um rebote e disparou um chute despretencioso da intermediária e o nosso Luís Borracha aceitou” (O Luís Borracha era goleiro do Flamengo e da Seleção Brasileira, na época). E a contragosto, ele complementa a locução: “O placar injusto agora assinala: Flamengo zero, Botafogo cinco. Ele, Ary, gostava muito de prosear e bebericar com um rapaz muito conhecido dele, o qual estava interessadíssimo em namorar sua filha . Passaram dias e meses, até que um dia o rapaz criou coragem e disse: “Ary, quero sua licença, sua licença para namorar, para namorar sua filha”. O autor de “Risque” e de “Folhas Mortas”, deu um murro na mesa e respondeu: “Quem é você para almejar tanto?” O rapaz retrucou, agora impávido: “Sou seu melhor amigo!” “E daí?”, voltou a perguntar, irado , o autor de “Na Baixa do Sapateiro”. O rapaz, um pouco atordoado, replicou: “Não somos amigos? Não bebemos juntos? Não temos tanta coisa em comum?” O autor de “Aquarela do Brasil” e de “Maria” exacerbou: “Você acha que eu deixaria minha filha namorar um pau d’água que nem você?” O rapaz, ainda gaguejando, treplicou: “Mas Ary, se eu sou um pau d’água, você também é: não bebemos sempre juntos?” O Ary não esperava tal argumento, mas não se deu por vencido: “Bebo sim, e muito, mas por acaso estou querendo namorar sua filha?” E por falar em bebida e impulsão etílica, vale lembrar a estorinha envolvendo o Goethe abstêmio, cuja namorada (ou amante?) um dia lhe disse: “Se sóbrio você é tão maravilhoso, que dirá levemente tocado?” Mas geralmente os compositores são, mesmo, pródigos em lições de abismos, de preferência abismos de rosas. Uma vez o agente musical de Mozart encontrou-o dançando agarradinho com a esposa na sala da casa sem lareira, numa noite de agudíssimo inverno europeu. Estavam namorando? Não. Estavam apenas esquentando um ao outro, na falta de outros aquecedores na casa.
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