quinta-feira, agosto 30, 2007

CINZAS DO NORTE

Ao iniciar a leitura do terceiro romance de Milton Hatoum (os anteriores, ganhadores dos prêmios Jabuti: “Retrato de Um Certo Oriente” e “Dois Irmãos”, todos publicados pela Companhia das Letras, São Paulo, SP), senti que já conhecia todo aquele cenário de paraíso perdido, povoado de personagens degradados, filhos de Eva. Nunca estive naquelas ínvias lonjuras, mas hoje a noção de distância é relativa, pois a comunicação é tão ágil que ficamos praticamente perto de tudo que acontece no saco geográfico deste mundo. A tensão ocasional que o autor suscita e impinge em cada conjunto de cenas no atípico arranjo da linguagem insinua logo na mente do leitor que é um livro para se ler atentamente, escapando aqui e ali de situações embaraçosas para alcançar, nas entrelinhas, a elegante firmeza de quem sabe narrar e descrever os estados de ânimo do ser humano derrubado na desanimada paisagem ofendida. Como se a cotejar a luxúria amazônica com a penúria nordestina a indagação vem logo no começo: a natureza luxuriante inibe a arte incipiente? É assim que por despeito ou gratuidade maledicente que o mais feio (o homem) ataca e massacra o mais bonito (a natureza)? Pelo sim e pelo não a arte estimula: da ausência chega à presença – e pode depois retroceder. Retoca os desvios, preenche os vazios, interliga os intervalos, e em contrapartida, propõe incoerências, expõe deslizes, denuncia e comete lesões e transcendências, tudo pelo amor de uma futura presença que venha substituir uma ausência permanente. É público e notório que a ruindade e a fealdade humanas empanam a bondade e a beleza da natureza, agora ofendida no deturpado cenário amazonense – o que é uma pena para nós, que a vemos assim de longe e de braços cruzados, como se víssemos um corpo ainda robusto, mas já desmiolado, com as partes mais resistentes já caiando aos pedaços nas mãos dos predadores. É quase certo que é com a mão no coração que autores como Graciliano Ramos (perante à penúria nordestina) e Milton Hotoum (perante à condenada luxúria amazonense) trabalham assim tão belamente em paisagens tão desarranjadas e com personagens tão desvirtuados. É claro que teriam redobrado prazer se o mundo e a vida que representam em suas obras possuíssem um pano de fundo literário que fosse de um mundo mais vistoso e de uma vida mais brilhante. É com muito equilíbrio emocional que o autor, desligando-se de uma paisagem de uma paisagem originária, edênica, liga-se à decomposta, mórbida e infecciosa paisagem da degradação das espécies, assim rebaixada ao monturo e ao descampado das chamas e cinzas e lamas, na qual uma humanidade hipócrita expõe as mazelas da própria ação criminosa: os indígenas reduzidos à expressão mais simples do pauperismo, atolados na bagunça da intemperança, forçados a comer o pão que o diabo amassou com o rabo nas palafitas e favelas da mendicância, da prostituição (adulta e infantil), do alcoolismo, da infinita miserabilidade. Onde , constantemente, os amigos se estranham, as famílias digladiam-se, o povo é o gado tangido pela chibata dos opressores desqualificados moralmente, despidos de sensibilidade e de intelectualidade. Um deus-nos-acuda é hoje o território que devia ser o salutar pulmão do planeta. As próprias palavras, “ como plantas absurdas, sem raízes na terra ou mesmo no ar: inflamadas não formavam opiniões”, ele diz na página 302. Alicia, vítima e algoz da sociedade representada por toda sorte e todo azar das tentações e malefícios e também das ações e situações insidiosas dos três amantes (o marido Jano e os enrabichados Ran e Arana, estereótipos da mais deslavada safadeza machista), é a estrela-guia do romance, que faz dela uma das personagens mais importantes da literatura de ficção brasileira, tanto pelo que sofre quanto pelo que faz sofrer. Uma vítima que enfrenta o algoz, igualando-se a ele na vilania, já que não lhe sobra outra alternativa para agüentar o que agüenta. Ao longo das páginas as palavras como que se engalfinham no contexto romanesco, tramam comunhões de fiapos, enrolam-se nas dubiedades e discernimentos, evaporam-se numa arritmia coordenada que redunda na equivalência dos contrários, espumando-se na possível afirmação que elas, as palavras, não apenas tecem os atos e os personagens do mundo alvoraçado, mas que são, em si mesmas e por via das dúvidas e das certezas, atos e personagens de toda a trama, como se fossem temperos que dão sabores à comida e à bebida dos leitores. “Mais de uma razão para chorar...e já não há palavras entre nós”, assim o livro termina, os personagens e as paisagens desaparecem – mas as palavras continuam a falar de cobras e lagartos no balaio de gatos desta vida neste mundo: “são manchas no papel, e escrever é quase um milagre”.