A TENTAÇÃO NOTURNA DOS FILMES
Foi na infância, quando fazia o Ginasial em Itapecerica, que contrai a cinefilia, para o resto da vida. No começo eram os faroestes e os seriados, depois vieram as comédias, os musicais, os capas-e-espadas, os bíblicos, os históricos, e quando estava na adolescência, em Belo Horizonte, aí caí de corpo e alma nos dramas e tragédias conjugais, nos policiais, nos de terror, de ficção científica, nas desventuras das guerras, nos contrapontos líricos, de vez em quando e também nos chamados filmes de arte e nos de “autor” – e a partir daí podia esquadrinhar e balizar o gosto, preferindo, sobre tantos lançamentos simultâneos, os mais refinados, assinados por cineastas do nível de Hitchcock, Hawks, Ford, Wilder, Wyler, Chaplin, Kasan, Latuada, Visconti, Rosselini, Renoir, Antant-Lara, Cocteau, Korda, autores de toda uma revoada consecutiva a passar diariamente do meio-dia à meia-noite nos cinemas do centro da cidade, de tal maneira que se podia programar a visão dos melhores (às vezes eu saia do Gloria na sessão das 20 e entrava no Metrópole na sessão das 22 - o trabalho era de andar só dois quarteirões). Via tantos filmes, tão constantemente, que cheguei até mesmo a contrair uma espécie de transferência visionária, associando imagens dos intérpretes com as de pessoas da vida real: o tio que lembrava (por um traço fisionômico, um tique gestual, um modo de olhar ou de se portar) Gary Grant, o primo que tinha os ares de James Stewart, a colega de aulas noturnas que tinha a cara de Laraine Day, a colega do bar em que eu trabalhava, que substituía na proximidade e na vivacidade todo o encanto de Paulette Goddard..., e a partir desse compêndio de presunções, era só ver uma mulher passando na rua que logo me vinha a idéia ou mesmo a imagem da Patrícia Neal ou da Jean Arthur ou da Claire Bloom; se era um homem que passava, podia ser o sósia de Charles Coburn, de Dana Andrews ou de Gary Cooper. Tanto essa “transferência” instintiva se evidenciou em meu subconsciente, que tempos depois, ao escrever o romance “Por Que Choras, Saxofone?” (ainda inédito), ambientado em Belo Horizonte na década de 50, não consegui evitar a nomeação dos personagens com a dos atores e atrizes dos filmes que mais ficaram em minha lembrança. Assinando uma coluna no jornal “Magazine”, de Divinópolis, nos anos de 2004 e 2005,.não pude evitar de resenhar, por alto, alguns filmes que via nas sessões do Telecine e também nos vídeos e dvd locados eventualmente. Em pálida homenagem à nunca assas louvada sétima arte, transcrevo aqui algumas notas então publicadas: A MORTE PASSOU POR PERTO (1957), de Stanley Kubrick, com Frank Silera e Irene Kana, um filme-noir (estilo que já marcou uma das melhores épocas do cinema) em que a perícia artesanal dá uma espécie de terceira cor ao preto e branco, a luminosidade da própria escuridão, criando a paisagem antropológica, por assim dizer, dos notívagos, estranhos seres que se portam noturnamente até mesmo em plena luz do dia no submundo dos devotados aos descaminhos e estreitezas pecaminosas do crime e de seus lúgubres aparatos: a solidão, o silêncio, a treva, o destino infundado da contrariedade ao mesmo tempo gritante e assumida. As casas sombreadas, as ruas afuniladas, o infindo prélio do bem com o mal, sem definição de resultados, sem vitórias e sem derrotas. A narrativa do gosto de transgredir de um lado e de reprimir do outro. Desde quando? Até quando? Artesão e artista, competente e refinado, Kubrick partiu dos projetos baratos para as realizações espetaculares e nunca perdeu o pique nem a finalidade: só ralizou bons, belos, grandes filmes como “O Grande Golpe”, “Glória Feita de Sangue”, “Spartacus”, “Lolita”, “Doutor Fantástico”, “2001, Uma Odisséia no Espaço”, “Laranja Mecânica”, “O Iluminado”, “De Olhos Bem Fechados”, para citar os que vi. No que agora estamos falando, ele joga os dados mais simples na história de três pessoas tristes e desenganadas:o boxeador fracassado, a dançarina fracassada, o gangster apaixonado, e tira daí os efeitos cênicos de uma obra que exprime e revela de forma veraz certos momentos e lugares da vida e do mundo, que a maioria da produção de filmes em nosso tempo não consegue. TABU (1931), de F. Murnau e Robert Flaherty, com Reri e Matahi: um dos dez filmes que eu mais tinha vontade de ver, desde 1958 e que agora vejo em cópia de DVD. Tudo o que intemporalmente cativa a alma humana: a natureza edênica, a inocência original, o bucolismo não degradado, a aurora e o crepúsculo entre o dia e a noite como duas auréolas em dois amantes, a beleza de toda feição genuinamente feminina, onipresente no sonho do amor e da poesia, longe dos braços da paixão e da prosa. Tudo isso no filme? Tudo isso e o céu também. O idílio nos percalços da naturalidade, as imagens superpondo-se na água, na praia, na mata, na montanha, na fusão das coisas e dos seres contando as histórias das pessoas, que é a mesma nas escalas elementares da criação. O movimento dos corpos ao compasso dos movimentos das almas: Reri, humana criatura, é sagrada deusa e passa a ser interdita até mesmo ao simples olhar do humano desejo. Ela que já tinha o namorado Mathai, que a adorava. E então? O amor humano vai submeter-se, aniquilar-se diante da devoção da divindade? Ela não era uma deusa para ele e ele um deus para ela? O impasse criado não instaura uma violência que contradiz à divina piedade? Foi assim, indagando, que a dupla Murnau – Flaherty abordou com maestria a congênita dramaticidade da poesia: a meia-pedra e o meio-tijolo da certeza incerta e da certa incerteza que medeia o céu e terra sob a égide duelística do plausível olhar divino contra a implacável hipnose demoníaca. FAUSTO (1926), de Murnau, com Emil Janning e Camila Horn.. Quando as portas do inferno abrem, as trevas fumegam, ribombam e estilhaçam. O surrealismo increspado domina os quadrantes e os círculos de todas as culturas do mundo. Se o Bem não resolve o impasse, que o Mal o faça: é a lição dos licenciosos da moralidade claudicante. O tema é antigo, atávico, repleto de variantes, discernimentos, sombreados – e nas mãos de Goethe equivale ao da própria fundamentação do mito. Eu mesmo já tentei uma paráfrase numa peça teatral (“Fogo Corredor”), ainda inédita, aproveitando a série de casuísmos dos chamados atos institucionais do tacão militar de 64 a 82, que dependurou a dignidade nacional no varal das tempestuosas sujeiras das salvaguardas demolidoras. Este filme não passa de um pálido lampejo de uma imensa luminosidade sobre uma treva de igual magnitude que, fora do cinema, forma a bela trilogia dos autores Goethe-Mann-Rosa referente ao secular e fáustico paradigma. FEBRE NA SELVA, de Spike Lee, com Lesley Snipes e Annabela Sciorra. Muitas aquarelas de muitas metrópoles podem ser bucólicas, mas as do Harlen (onde no dizer de Woody Allen as pessoas começam a fazer sexo muito cedo, geralmente às seis da manhã) são os lados opostos dos cartões postais. Estamos diante de um dos melhores filmes dos últimos anos, feito dentro do problema racial, dando a palavra aos negros, palavras que anotamos assim por alto, no escuro do cinema. - Sabe por que os brancos nos odeiam? Porque não são pretos. - A finada mulher continuava a pedir ao viuvo: beije meus lábios, beije. Ele procurava e não encontrava os lábios dela. Os pretos só pegam brancas. E as pretas mais lindas só pegam branquelos hediondos ou bobões. - Já me xingaram de carvão, meia-noite, negão, mas tudo por inveja. Os brancos adoram meu tão profundo bronzeado. - A certa altura os dois perfaziam a cena do mosquito no leite: o afro e a italiana se fundindo na descoberta de novos e belos mundos. “Fico às vezes tentado pelo doce néctar do fruto de outra mulher, mas o diabo não tem nada a ver com isso”, ele diz. - Uma delas diz à outra: Estamos perdendo nossos homens para as brancas. E a outra responde: Precisamos sair com os brancos, mas nenhum deles presta, nenhuma das cores presta. Mas detestaria dormir com um arco-íris. Resumo do filme: toda pessoa calma e ajuizada traz dentro de si, sem saber, um vendaval que às vezes irrompe, incontrolável. E num minuto desaparecem o passado e o futuro, fica só o presente, pegando fogo. LEVADA DA BRECA, de Howard Hawks, com Katherine Hepburn e Gary Grant. Hawks é especialista em comédias malucas, mestre em satirizar situações sérias com pessoas iracundas e sisudas, de tal maneira que o humorismo flui naturalmente, sem forçar a barra dos jogos de cena das gagues e dos esgares. Ele sabe tirar a água da pedra, jocosamente. Mestre também no tratamento dos dramas e dos faroestes cinco estrelas, autor que é dos infinitamente reprisáveis “À Beira do Abismo” e o antológico “Uma Aventura na África”, na interpretação inolvidável da dupla Bogart-Bacall. Neste “Levada da Breca” ele educa cachorros e domestica leopardo sem os recursos digitais. com muito mais credibilidade. NÃO ME MANDEM FLORES, de Norman Jewison, com Doris Day e Rock Hudson. A Doris não é só um amor de pessoa, é uma festa em figura de gente. Sem dúvida que é uma das responsáveis pelo que a América do Norte tem de grandeza e de beleza (quando ela canta o “Que Será, Será”, em “O Homem que Sabia Demais”, ela escreve com letras de ouro o momento mais belo de toda história dos Estados Unidos). Neste filme ela só falta cantar. Mas provoca risadas sem parar: e enquanto mais nervosa fica com o personagem do parlapatão interpretado pelo Rock, mais encantadora fica, loura e vermelha, ao lado dele, impotente e grandalhão, hipocondríaco, todo sombreado (e mesmo assim ótimo no papel). Não dão a menor pausa à hilariedade. O ESTRANHO, de Orson Welles, com Loreta Young e Edgar G. Robinson. As angulações visuais (usual maneirismo de Welles) surgem nas primeiras cenas com várias câmeras focalizando de diferentes pontos de vista o andamento narrativo. A narração é convencional, como observa Pauline Kael, que todavia o livra da pecha de filme menor, assegurando a evidência wellesiana de que as pessoas em geral carecem de mais dimensão para seus movimentos. Loreta Young (mesmo dormindo, ela é a vida acordada) é uma das fixações de minha adolescência, quando me inebriava diante de um close dela no spootligth: a deslumbrada suavidade das feições e expressões. Não é por menos que as estrelas do cinema tornaram-se protótipos e paradigmas das mulheres de todo o mundo. Antológica também é a aparição do próprio Orson Welles numa das cenas do fim: os olhos enormes inchados (como bochechas?) que brilham na escuridão do inferno nazista do qual seu personagem procede. REMBRANDT, de Alexander Korda, com Charles Laugton e Elza Lanchester. Quando perde a esposa em Amsterdã (1642), ele se perde na escuridão da inutilidade e só se refaz nos braços de outra mulher, quando volta a enfrentar seus velhos e inseparáveis demônios, que tanto o instigam. Quando um homem possui uma mulher, ele diz, possui todas as outras, e possui também a lua, as estrelas e muito mais. As quentes mulatas, as louras frias, as esbeltas que atormentam. E continua dizendo: “sinto que meu mundo não é material, que vivo numa nuvem densa e deslumbrante. Oh, Deus, é impossível viver corretamente, vejo tuas obras, uma a uma, que falam-me de tuas profundezas”. Degradado até à ultima baixeza (como diria o nosso Manuel Bandeira), ele só se recupera quando conhece a moça de olhos tristes e mãos frágeis, vendo nela a água que a lava e a luz que a ilumina. Quando o olhar já não tem medo, a boca sorri amplamente. A vida do artista é mais trágica porque ele não morre apenas uma vez, mas está sempre a morrer em cada capítulo de sua obra. DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL, de Glauber Rocha. Qualquer obra de arte fala por si, por isso acho desnecessária a badalação do Glauber, que é assás repetitiva, boba e ineficaz. Serviu apenas para dar mais asas à dupla Caetano-Gil? Mas o filme..., é o que sobrou da terra exaurida, a caatinga, as falas inaudíveis... A sonorização dos filmes brasileiros é em geral tão ruim que deveria ser substituída por legendas como nos filmes de outros idiomas, não? A cantilena do povo saindo das pedras, o Monte Santo a expandir os raios solares, um sistema de crenças a céu aberto: os pobres terão as terras verdes do céu, os ricos, as terras vermelhas do inferno. As carabinas disparam, os jagunços e cangaceiros lideram as amotinações contra os tacões da oligarquia inexpugnável. A robustez um tanto obesa dos personagens contradiz o pregão da miséria nordestina. Por que até hoje a arte não tem um olhar mais sensato e consciente sobre o Nordeste? Não está passando da hora de baixar o pano sobre Jorge Amado e suspender sobre Graciliano e João Cabral? O fatalismo que temos visto é caolho e maneta, a desgovernança política impera de ponta a ponta. Os honestos (Arraes, Celso Furtado) definham e morrem, enquanto os corruptos dos conchavos engordam e enxameiam, já rompendo os limites do Norte. Você puxa uma pessoa e só vem a roupa suja e rasgada. Até quando vigorará esse errôneo tiroteio? O Antônio (Conselheiro) das Mortes precisa de uma boa e visceral revisão. TESTAMENTO DE ORFEU, de Jean Cocteau, com Jean Marais e Juliette Greco. O tempo obedeceu às mesmas leis do espaço. O filme é o veículo do poeta em busca da sabedoria, na qual vai se desnudando até entrar nos sonhos dos fantasmas simbólicos. Não é gratuitamente que Cocteau é considerado uma das figuras mais emblemáticas, instigantes e carismáticas da moderna cultura francesa. O fogo que revela a fotografia pode também queimá-la. A arte de morrer e renascer continuamente é manifestada no ritual transformista ao som dos batuques e à vista dos sortilégios afros e primitivos. A cama na vertical é um altar de súplicas e oferendas, a porta do armário é o quadro negro onde Picasso pinta a morte e a ressurreição antes de construir um Mimo de Vênus. Culpado pelos crimes que não cometeu, o poeta tenta atravessar a parede desse loteamento para o mais largo e vago do outro mundo. Ninguém jamais sentiu uma certa dificuldade em viver, uma sensação de que está num tempo e num lugar errôneos? Jean Marais faz o papel do homem que não passa de um caos ambulante das cavernas e bosques intemporais – e Juliette, sempre explícita na irreverência, está aqui muito longe do mosaico existencialista de Saint-Germain ,de Sartre e Epígonos. Sem aquela aureola de musa dos combatentes ressentidos da postura ditatorial dos ensinamentos dogmáticos da classe dirigente. DE CORPO E ALMA, de Robert Altman, com Nave Campbel. Toda a numerosa grafia corporal bailando ao som dos sopros e percussões da alma. A arte da mais alta sensualidade no mundo mais refinado do balé estético. O close na garota, o equilíbrio das estrelas dançando no empíreo, oniricamente na graça lânguida. Ao som em gotas de chuva extemporânea, os deliciosos favos coreográficos, os átimos e átomos amplificados, escorregadios no equilíbrio rotativo das abstrações redentoras de outros momentos fugazes. O que está no interior do movimento é o que conta: pode ser um pássaro, uma criança, uma cor de fagulha, uma comoção extasiante, um púbis momentaneamente exposto, esvoaçado no torvelinho enluarado. Assim dançam os pensamentos, corporeamente. O próprio chão é aéreo, aereamente azulado. PAVOR NOS BATIDORES, de Alfred Hitchcock, com Jane Wyman, Marlene Dietrich e Richard Todd. A música que toca nos nervos, o carro na velocidade que nos atropela, o casal apavorado fugindo e procurando – é assim que a maestria de Hitch dá o tom do intróito. Logo surge Dietrich, apavorada, a falar da morte do marido. A seqüência é limpa e congruente, não desperdiça um minuto de nossa atenção, não joga fora um gesto dos interpretes, uma cena na continuidade, tudo enquadra, fundamenta e tampa cada parcela das ações, a conjuntura tramática da vida e da morte em questão aberta e repleta de percalços de toda ordem. A Jane Wyman é bonita, é boa atriz? É, sim, e no filme BELINDA, que lhe deu um merecido Oscar, ela já exprimia o mesmo semblante de uma de minhas irmãs (e um amigo de Belo Horizonte, onde morávamos na época, é que chamou minha atenção para a parecença), tendo apenas a pureza e a formosura como armas de defesa no aguerrido cotidiano de todos os tempos. Mas ela teve a infelicidade de desposar o canastrão Ronald Reagan, que sujou o nome dela nas porcas malhas do macartismo de triste memória. Mesmo assim o seu conceito de boa atriz sobreviveu, é claro. E neste filme, como no outro citado, ela fascina, mesmo estando um tantinho rechonchuda, mas com os olhos e os lábios tomando conta do rosto e da preocupadíssima personagem que interpreta. Com ela e com Todd e Michael Wilding (primeiro marido de Elizabeth Taylor) e Dietrich e a batuta de Hitch um senhorial teatro inglês passa a ser o palco real de todo o pavor dos bastidores, onde se representam a culpa e a inocência em papéis trocados, como acontece muitas vezes na vida real. Hitch é Hitch do princípio ao fim de sua carreira, nas vozes e nos gestos, nos detalhes e na substância. ESCOLA DE SEREIAS, George Sidney, com Esther Willians e Red Skelton, Xavier Cugat e Sua Orquestra, músicas de Harry James e a voz de Carlos Ramirez. Os tímpanos atinados, afinados, atilados, a mulata a rebolar nos tinidos metálicos e sopros abstratos, a fonética do bailado das coisas e dos seres nos ataviados palcos da vida cor-de-rosa. A rumba nos bemóis e sustenidos, a Esther, uma escultura sobrehumana, de beijos e abraços molhados no verde-azul da piscina, onde nada e mergulha como o doce pássaro da nossa juventude. Carnalidade fresca e rosada, mananciosa de excitações, prodigiosa de promessas. No fundo das águas límpidas suas formas empertigam, arredondam, exprimem a sensualidade da natureza, sublimando os detalhes do específico tremeluzir do desejo, da magnífica fibrilação das cordas libidinais da felicidade corporal no ápice da salubridade existencial. O certo é que a galhofa e o romantismo têm cílios longos e largos como o par Esther e Skelton. É até estranho reconhecer que o imperialismo norte-americano, hoje antipatizado no mundo inteiro, teve início no brilhantismo das artes populares (música e cinema), e que levou a todos os recantos do mundo esses produtos da fábrica de sonhos chamada Hollywood, que depois deu no que deu: a infelicidade política de enganadores como Kennedy, Nixon, Reagan (pai e filho), que estiolou, massacrou o sonho, virando a face da complascência para baixo e a do horror para cima. Mas é revendo Esther Willians que confirmamos a crença de que priorizar a função libidinal do corpo é resgatá-lo da mera condição de absorção e de exceção. Ela em tantos filmes de água e ar dos mais puros para os nossos pulmões e corações. OUTUBRO (1929), de Sergei Eisenstein. Um documentário de expressiva feição plástica e intrigante composição narrativa, cujo roteiro retrata e enfatiza os lances e meandros da revolução soviética de 1917, quando uma nova era parecia clarear os horizontes da história da civilização com os raios portentosos, que infelizmente não mantiveram a voltagem de força e luz até o final do século vinte, apagando-se melancolicamente nos braços da incompetência política e da má vontade dos seres humanos em geral. Ficou, no entanto, o épico, exemplar e encorajador prenúncio da possibilidade utópica da derrubada de um arraigado e vicioso poder secular, no filme representado pelo tzarismo da monarquia, da oligarquia, do feudalismo, do atraso de toda forma de vida humana. Outro poder se levanta anunciando a reeducação das pessoas e a reciclagem das metodologias governamentais. O júbilo no ar tinge os rostos de manifestações airosas de sonhos e exigências, instaurando assim a teoria revolucionária do comunismo distribuidor eqüitativo do pão e da liberdade, agora sem as tristes e notórias exclusões. O filme é uma obra de arte, sem didatismo, apenas saudando a aurora redentora, vermelha e viva, enquanto durou. Mas nem tudo se perdeu, apesar das tempestades posteriores. Sem o bolchevismo russo de 1917 a humanidade já teria se consumido em si mesma, na ganância dos mandatários das nações e das sociedades. Ou não? A INFÃNCIA DE IVAN, de Andrei Tarkosvki. As guerras ideológicas do século 20. O menino, o bode, a borboleta, as árvores, a mãe com o balde, o moinho eólico, as varas na vertical sobre a água estagnada. O menino é o guia da vida rural dissipada pelas lutas militares da desunida União Soviética. O lirismo desmiolado, aos farrapos, mas sempre o lirismo, aqui e ali em alguns momentos e em cada vez mais raros lugares. O lirismo nas mãos dos mestres da expressividade é sempre conseguido e transmitido, mesmo sobrepujando áridas circunstâncias. Tarkosvki sabe dosar e transigir, sempre inculca um namoro, mesmo reles, no intervalo das refregas. O fio romanesco não é amarrante, motivo pelo qual às vezes a atenção é dispersada – e o menino tem que tocar o sino para despertar o ânimo das pessoas cansadas de tanto bombardeio. É um filme longamente triste como duas sombras de crianças correndo na praia brumosa, também guerreada e vencida. A VIUVA ALEGRE, de Curtis Bernhardt, com Lana Turner e Fernando Lamas, música de Franz Lehar. Vê-se logo e até inesperadamente que já no começo do século 20 o dinheiro norte-americano causava rebuliço no resto do mundo, gerando esperança de resgate de insolvências e medo de maior afundamento nas republiquetas do terceiro mundo. O filme começa a engasgar logo na abertura das cortinas e mostra a suntuosa encenação de uma monarquiazinha em maus lençóis. A frivolidade se atenua um pouco quando Lana Turner chega e começa a dar suas cartas brilhantes, porém restritas, num filme vazio e transparente, muito aquém dos dotes e talentos dela. O MÉDICO E O MONSTRO (1932), de Reuben Mamoulian, com Fredric March, Mirian Hopkins e Rose Hobart. A neblina e a escuridão encobrem as ruas de Londres – e o policiamento ostensivo indica a iminência dos perigos nos quatro cantos. O médico professa que o ser humano é dois em um: um a tentar a sobrevivência animal, e o outro a tentar o alcance da nobreza de caráter. Como fundir as duas partes de forma que se possa aproveitar apenas a boa? O laboratório das empíricas poções funciona e se torna o inferno repleto de boas intenções. O endereçamento dos instintos e não da mente é atingido e daí é só tomar a droga e ficar doidão, como acontece aos montões nos dias atuais. Quando ele quer retroagir, é tarde. O vício é imbatível, vira e mexe e lá vem os demônios dos quintos dos infernos. É assim que a curiosidade mata o gato? O MÉDICO E O MONSTRO (1941), de Victor Fleming, com Spencer Tracy, Ingrid Bergman e Lana Turner. Ressalta na tela, logo no início, a prioridade apreciativa das doçuras ímpares de Ingrid e Lana, no preto-e-branco mais colorido deste mundo. A candura de Lana ameniza o reacionarismo vitoriano de uma sociedade que não abria mão do círculo vicioso de seu status. E Ingrid, do alto sueco de suas maravilhas que fascinaram outras províncias internacionais, oferece o riso da tríplice conjugação facial: olhos/nariz/boca, que faz o Dr. Jeckil perder a cabeça e as estribeiras. Exímia e expansiva nos lances, concisa nos modos e expressões, ela brilha, mesmo dentro da mais espessa escuridão do sofrimento. “Dizem que não sou feia quando estou à vontade”, ela diz ao médico, sem saber que ele é o monstro que a submete ao regime de terror mais torturante. A bela e a fera, a inocência e o pecado, a beleza e a feiúra, os dois extremos em atritosas relações. Mesmo diante do suplício, ela se mantém ilesa interiormente e sua formosura não afetada reluz na suavidade das auréolas de seus dotes inerentes. Grande filme. A dualidade química das poções transformistas seria uma premissa da síndrome mais atordoante dos tempos atuais: o vício das drogas alucinantes, agora já no nível social de contaminação? (Um simples adendo. Revendo agora, depois de tantas décadas, o filme SUEZ, com Tyrone Power, Anabela e Loretta Young, senti-me, estranhamente, como se fosse uma pessoa para quem o tempo não tivesse passado, ou então, como alguém que tivesse morrido ou dormido durante décadas e ressuscitasse ou acordasse repentinamente dentro daquela terrível tempestade de areia do istmo que virou o Canal de Suez). A ESTRADA DA VIDA, de Federico Fellini, com Giulietta Massina e Anthony Quinn. No cenário de pobreza de uma terra castigada, as pessoas se privam de tudo, até do reles pão de cada dia. Elas se viram, enrolando. Os dois interpretes equivalem-se nas performances: ele na truculência arraigada, ela na patetice de nascença. Pândegos e palhaços, eles são, e a platéia (a humanidade inteira?) também. Gelsomina é a réplica feminina de Carlitos, duas figuras patéticas e não apenas cômicas do cinema. A estrada da vida é longa e espinhosa, repletas de atropelos e zombarias: sai dos cafundós, passa nas bocainas e chega-se aos desterros nas lúgubres noites das procissões dos enterros. Gelsomina gosta, ri, sem saber que qualquer cidade não passa de uma roça grande, com outras plantações e colheitas. A jocosidade tem suas pausas de muita tristeza. Quê cara engraçada ela tem, alguém diz, no filme e fora do filme. Só de vê-la dá vontade de sacaneá-la? QUANDO AS NUVENS PASSAM, de Richard Whorf, com um elenco fabuloso de astros e estrelas. Em 1954 eu vi o trailer desse filme no Cine Brasil (Praça Sete, BH) e só agora consegui vê-lo inteiramente. É musica em toda parte, o tempo todo (tenta-se contar algo da vida do compositor Jerome Kern)): até as pedras da rua, os balanços do parque, as roupas e sapatos das pessoas cantam, tocam saxofones, bailam nos apinhados palcos de uníssonos figurantes. Nenhuma linha dramática, nenhum fio condutor, nenhum pano de fundo para surpreender – mas em compensação desfilam as moças encantadoras da melhor juventude de todos os tempos do planeta, escolhidas a dedo. Um beijo casto da moral puritana? Como tentavam esconder a sensualidade inerente das pessoas, heim? Mas June Alisson tinha aqueles lábios inchados de tanto beijar (fora dos filmes, com certeza). LA MAJA DESNUDA, de Henry Koester, com Ava Gardner. A mundialmente propalada beleza de Ava na época de seus belos filmes despertavam em mim a suspeita de que toda aquela formosura era algo provisório, que o estofo fisiológico dela era vulnerável a uma precoce decadência. Onde contraíra esse preconceito? Nos equivocados comprometimentos amorosos dela com homens truculentos, que a castigavam sadicamente nos intervalos das filmagens? À certa altura do filme, a Duquesa de Alba diz a Goya: “Sua pintura me assusta, é como se visse a verdade de perto, profundamente” E ele responde: “A verdade só assusta quando fugimos dela”. QUANTO MAIS QUENTE MELHOR, de Billy Wilder, com Marilyn Monroe, Tony Curtis e Jack Lemmon. A visão noturna da cidade durante o tiroteio é algo de embasbacar pela limpidez da luminosidade e a confluência dos planos e tomadas. As estrepolias, os abalroamentos, o gangsterismo desafiando a Lei Seca de 1929, tudo conciso e exacerbado num equilíbrio de ação e de situação que preludia perfeitamente a linha narrativa de todo o filme. As fugas e perseguições concatenadas com maestria na exuberância dos cenários e ações da constante transigência da tragédia para a comédia e vice-versa, tudo se faz aos sopros da fumaça dos bandidos, contracenados aos tentadores rebolados de Marilyn, e assim a farsa rola como uma bola no gramado. A versatilidade de Billy Wilder é digna de nota: passa da seriedade preocupada para a alegria descontraída sem forçar nenhuma barra, simplesmente passando como o tempo no espaço. Isso praticamente em todos seus filmes. O CÍRCULO DO MEDO, de J.Lee Thompson. A guerra implícita em qualquer cidadezinha do violento império da América do Norte. A pontuação musical das primeiras cenas já dá o tom introdutório da brutalidade: até a folhagem do jardim treme de pavor, até os seios de Polly Bergen se espetam, assustados como os olhos. O medo sempre foi cúmplice da criminalidade. E a inocente menina, coitadinha? Assim como a serpente hipnotiza o passarinho, o vingador faz com sua vítima. Depois o enredo foi refilmado com o nome de CABO DO MEDO, com ótimo resultado, com Robert De Niro no papel do desalmado, aqui representado por Robert Mitchum, dois grandes atores. Dois filmes eternamente assombrosos. MONSTER – DESEJO ASSASSINO, de Patty Jenkins. Charlize Therou ganhou o o Oscar de atriz principal e Christina Ricci devia ter ganho o de coadjuvante, por sua também irrepreensível atuação. Raramente nos filmes americanos duas intérpretes surgem assim tão ao natural, sem o menor charme, feias de unhas e dentes, aceitando e enfrentando a violência cotidiana do indefinido sofrimento social. Charlize tornou-se uma assassina monstruosa depois de convencer-se que o que suas vítimas mereciam era mesmo o castigo letal, o trucidamento puro e simples. Ela só participa do lesbianismo da amiga depois de certificar-se, enojada, da hediondez realística dos homens que procuravam satisfazer com ela suas taras de estupradores confessos. Um doce anjo era sua amiguinha neófita no meio irrespirável daquele cruento submundo. ALTA SOCIEDADE, Charles Walters. O elenco é uma seleção de nomes exponenciais dos anos 50 de Hollywood. Grace Kelly é a pureza mais linda, brilha tanto que até parece ser iluminada por dentro. Um dos poucos filmes em que ela joga o corpo e suas prendas (maciez, relevos, cores e curvas) na direção dos espectadores. Louis Armstr ong com a voz de todos os instrumentos (e todos os instrumentos não param de afirmar: “Cole Porter é o maior! É o maior!”). O filme não é propriamente musical, mas até o dueto Sinatra-Crosby está bem contextualizado na tramática festança dos milionários. CALLAS FOREVER, de Franco Zeffirelli. Maria Callas, a diva do lirismo, a voz gravada nas películas do som e da imagem que felizmente se remodelam e se conservam ao longo dos anos. Felizes os tempos e os lugares que podem contar com a presença da lembrança de Maria Callas. Toda vez que em qualquer acústica do mundo, mesmo a do campo aberto do pensamento, espoucar as luzes e desabrochar as flores da natureza,os melhores seres são recriados para recepcionarem a gama de fluidos e mensagens, os ímpetos e êxtases, as virações e guaridas dos timbres e acordes e vozes e suavidades de Callas puxando o coral dos contraltos e sopranos, tenores e barítonos (ah, a apaixonada angelitude dela e a apaixonada pungência de Gigli), ah, assim nós, pobres mortais e meros ouvintes, entramos na sinfonia das esferas, nas asas das borboletas, das árias e das sublimações. NO TEMPO DAS DILIGÊNCIAS, de John Ford, com John Wayne e Claire Trevor (personagem central de meu romance inédito “Por Que Choras, Saxofone?”). Até o caubói Wayne, secarrão e entrunfado, está simpático e cordial nesse que não é apenas um dos melhores faroestes, mas sim um dos melhores filmes de Hollywood. O comprometimento ético-moral, sem desdenhar o componente psico-comportamental (o índio aqui é uma figura simbólica nem do mal nem do bem, mas do mal-entendido da colonização): o pecado (a prostituta) e a virtude (a dona de casa) se miram logo que se deparam, e fica a dúvida: quem é o pecado, quem é a virtude? O sorriso da pecadora (?) diante da inocência, é pura antologia cinematográfica. E fica outra dúvida: Ford é melhor que os outros cineastas? Só é inferior na arte de contar histórias a Shakespeare? Mas ele sacramentava, no vai da valsa, a matança dos selvícolas? Penso que não. A luta, em sua obra, não seria apenas um atavio, um atalho, uma maneira isenta de contar uma história tenebrosa em si mesma? TAVERNA MALDITA, de Jack Webb, com Janeth Leigh, Edmond O’Brien, Ella Fitzgerald, Peggy Lee. É a música que instaura, conduz e desfecha o espetáculo. Uma coleção de boas canções desvanecendo os círculos e quadrantes, depois de timbrar os forros e soalhos da casa, quando as vozes de Ella, Peggy e Janeth revezam-se com a corneta, a bateria, a clarineta – já que tudo é orquestra na trilha melódica do roteiro colorido em plena escuridão dos dramas e tragédias da vida social que confronta inocentes úteis à mafiosos inúteis. Ella em duas seqüências, rouba o interesse de nossos olhos, ouvidos e as outras atenções de nossa individualidade. QUERO VIVER, de Robert Wise, com Susan Hayward. Filme calcado na história real de uma inocente executada na câmara de gás de San Quentin, EUA, através de um erro não só judiciário como policial, social e jornalístico. A praça pública, vista no final, parece impregnada dos palavrões de todos os inocentes do mundo sujeitos à mesma pena de erros crassos e gritantes. O filme soube conter o pungente processo de aniquilação, o torturante, vil, desumano e macabro cerimonial da justiça injusta. “Padre, sou inocente”, ela repetiu, antes do sacrifício. AGORA SEREMOS FELIZES, de Vincent Minnelli, com Judy Garland, Margareth O’Brien, Mary Astor. A Judy insinuante e vívida, formosa e cantante, amável e graciosa. Mary Astor no papel da mãe, nostálgica do próprio estrelato. Minnelli, o guardião, o guru, o eternamente apaixonado da eterna juventude de Garland. Bom prenúncio de filmes mais inteiriços, brilhantes e inesquecíveis, que ambos fizeram depois. Margareth exibe com perfeição as primeiras cintilações do que depois se tornou num grande e belo iluminamento estelar que até hoje encanta os aficcionados. E sempre encantará.
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