quarta-feira, outubro 15, 2008

ESCARAMUÇAS

Escornado no banco da venda do arraial, os olhos vermelhos e estufados, a roupa suja e rasgada e grudada de carrapichos, o Zazá da Samambaia narra suas peripécias mais recentes: - ELE correu atrás de mim a noite inteira, o demonho, esse capeta, aquele diabo, o coisa-ruim. Nem me deu tempo de fechar a porta da casa, quando ia sair. Arreganhou os dentes de ferro em brasa e veio. Rastejei debaixo da cerca de arame, ganhei o trilho da capoeira, entrei no cerrado das lobeiras, ele colado atrás, a fustigar minhas costas com os ramos de esporão. Só me deu sossego quando o sol estava saindo e ajoelhei ao pé do cruzeiro lá no Morro das Contas. O senhor faz uma idéia da distância: lá de casa até o alto do Morro das Contas, a noite inteira zanzando no cipoal, na ribanceira, no capim meloso, na frente do tatu pemba sugador das podridões do cemitério.É nu e cru, o medonho, ninguém faz a menor idéia. É uma moita de esporões agudos que descola do valo e vem me pegar, espetar-me seus espinhos, suas folhas de tutaranas e mandruvás. Tem dois chifres na cabeça, um jeito de morcego na tristeza da feiúra, os pés de pato que voam como se fossem asas, é assim que ele é, o lúcifer dos negrumes sensacionais, o capeta das figuras de livros, em tamanho natural, o bode preto dos quintos dos infernos, o motreco das estacas no brejo das congonhas e bocainas. O excomungado corre atrás de mim, sem temer minha rezação, adivinha meus negaceios e esconderijos, atalha quando dou voltas, dá voltas quando atalho, sempre a me sovelar, a me queimar com seus bafos de onça histérica. Corro tropicando, caindo e levantando, esfolo o nariz e as orelhas, sangro os pés e as mãos, machuco os olhos, os cotovelos, sigo rasgando a roupa nas unhas de gato das vielas selvagens, ele nos meus calcanhares, o malvado superego das montarias humanas, a soltar fogo pelas ventas, a exalar o fedor das carniças de ratos envenenados. Que Deus te livre e guarde de tal monstrengo, o cão imundo das evacuações catinguentas, o satanás dos imprevistos e das moléstias, o furricoco mais sombrio dos abismos, o rabo grosso cheio de felpas nos badalos das pontas. O que o senhor está pensando? Procuro dar meu jeito, xingo, esbravejo, rezo, reluto, mas nada adianta, ele até escarnece e fica mais raivoso, avança de uma vez, puxa minhas orelhas, agarra no cós de minha calça, estica e rasga minha camisa, como o senhor pode ver. Filho da Puta, demo das profundas dos infernos, dono dos esporões dos barrancos, horrível anjo dos pêlos felpudos e eriçados de olhos cruéis, a carcaça de todos os terrores noturnos, o belzebu das escarpas rochosas, que range os dentes da bunda, mesmo sendo banguela na bunda – assim ele é: escamoso na restinga pelada, manhoso nas ferinas fibras dos ananás, com o pêlo vericuloso, que parece roupa mas não é, é a indecência peladona do mais feio que os outros. Tem uma lança ou facão saindo no lugar do braço direito , que estica e encolhe quando bem quer. Se tem estrada ou trilho na frente, eu vou. Se não tem, entro no mataréu, dou trombada nas árvores e nos cupins, pulo as moitas e valos, muros de pedras, atravesso os brejos e córregos até sem ver, quase voando, olha só como estou ferido no rosto, nos braços e nas pernas. Depois ainda dizem que estou com psicose alcoólica, uma injúria. O senhor, que sabe das coisas, pode me dizer.A perseguição que sofro é efeito da pinga que bebo? Não senhor, nunca! Bebo para esquecer dos tormentos. Sei que a pinga é moça branca, filha de um homem trigueiro – e que quem pegar amor por ela, nunca vai juntar dinheiro. Tudo isso é verdade, mas nada tem a ver com o bafo do satã na minha nuca. Sempre bebi na vida, mas só agora me vem esta danação dos quintos. Às vezes estou voltando para casa, depois de um duro dia de serviço no cabo da enxada, estou andando de cabeça baixa, sem um pingo de pinga nas veias, a enxada de boca larga nos ombros, todo assim descuidado – e quando vejo, o que vejo? Ele, o vibrante estertor das pavorosas maldições, o estridente contumaz, o rapace falastrão mesmo na mudez de um chulo e ímpio e íncubo e malvado arrotador de enxofres horripilantes. As cores das coisas vão descolando e caindo no chão, as perebas das aparências assás dolorosas acicatam-me da cabeça aos pés, aí conto uma, duas vezes e dou no pé e ele vem atrás, as asas de morcego, a cara de rato, o capote de vampiro, os dentes de cão zangado, o vulto hediondo do lobo faminto, o filho da porca que ronca enlameada no brejo. Aí grito apavorado, tenho repentes de enfrentá-lo homem a homem, mas desisto e encolho, volto a correr na direção do esbarrancado, viro um gato na esperteza, passo a pinguela e o quebra-corpo num átimo, mergulho no rio com roupa e tudo, grito os nomes mais feios que a raça humana já inventou, mostro muques ao tronco do jatobá, faço figas e cruzes-credos até chegar no cruzeiro da laje, onde fico de joelhos, rezando, até o dia amanhecer. Aí ele, de orelhas murchas, pálpebras de aranha, traidor de seus iguais da caverna, aí ele tranca a circulação da seiva na haste da planta, esbordoa um seixo enviesado, aí ele me olha, injuriado, de longe e desaparece na barra do dia e do mataréu. O infeliz das trevas, o vilão dos redemunhos, o opaco das coisas malévolas, com sua barba de arame farpado e os cabelos de milho podre, desaparece no sorvedouro do ar daquelas bibocas. Mas quando passa o dia e a noite de novo chega, ó ele aí de novo, o olhudo das frinchas, o rei das bandalheiras e dos pactos inconfessáveis, novamente a fustigar meu pavor, a esfolar minha sofreguidão, a repetir minha esfolada peripécia. Quem me ver correndo e xingando e dando muques nas estradas e matos, deve pensar que estou doido varrido, mas não é isso não. Ninguém vê a horrenda figura do colossal pererê atrás de mim, ninguém faz um cálculo dos meus apertos nas tronqueiras e desfiladeiros, ninguém vê o diabo das pernas arqueadas e o peito de pomba e a cara do hediondo fatal dos rolos inenarráveis. Por que será que me persegue tanto assim? O que fiz de tão ruim na minha vida para merecer tal castigo? Não maltratei minha mãe nem meu filho que nunca tive, nunca prestei falso testemunho, nunca pequei contra a castidade nem desejei a mulher do próximo. Não canso de perguntar: por que ele me persegue tanto assim? Será que gosta de mim, ele, o pelé no caminho do gol adversário, o mais feio do que os outros, o que é a solidão da corriola? Quer me levar para a terra dele, a da fogueira que queima eternamente sem se extinguir? Cruz credo! É muito capaz de eu ir, aqui ó! Não vou e não vou, nem amarrado por mais de uma dúzia deles, enfiados um no rabo do outro. Fadigado pela contação da desventura e das peripécias, ele pede mais um gole para rebater o anterior e depois escorna novamente no banco tosco da venda, a boca aberta babando, os olhos esbugalhados no costumeiro pesadelo. Os fregueses entram e saem, nem dão pela presença dele, estendido no canto escuro da parede. É conhecido na região por Zazá da Samambaia, o funcho-brado, o pinguço da Venda, um pau-dágua desassistido pelas reiteradas clemências humanas e divinas, o que não tem onde cair morto, o filho pagão sem pai nem mãe. O que tem, sim, na verdade, é uma triste história de seus dias no correr dos anos. Em criança, foi criado de déu em déu, na casa dos outros, sem experimentar as dores e alegrias do afeto recíproco, sem conhecer o vínculo umbelical, possessivo e tortuoso de uma família nuclear. Viveu parte da infância e da juventude no alambique do Benevides, onde contraiu o hábito do gole alternado nas várias horas do dia. Moeu cana e engarrafou cachaça até quando o patrão vendeu a propriedade ao Sô Azevedo, um latifundiário de maus bofes e piores olhados, que não foi com a cara dele, que já estava um tanto oval e desbeiçada , expulsando-o de seus domínios. Ele então foi viver num casebre abandonado na beira da estrada, perto do grotão das samambaias, à meia-légua do arraial, onde passou a ir todo dia para tomar cachaça e prestar serviços esporádicos como tirador de formigas, coveiro de cemitério, capador de animais e capinador de carrascais. Adquiriu logo a fama de cometer as piores maldades, como pisar nas plantas tenras, comer borboletas e beija-flores, bater nos bobos e nos animais mansos, praticar zoofilia, aterrorizar as crianças e velhos. Passou a ser sempre o principal suspeito de todos os males feitos nas redondezas, como pôr fogo nas matas e pastos, colocar barras de ferro nos trilhos da linha férrea, deixar porteiras e tronqueiras abertas, badalar os sinos da igreja nas horas mortas da noite. Entre as represálias naturais que já sofreu na vida, além da possessão atual, consta uma estrepada funda no pé direito, que o deixou mancando muito tempo; uma facada no braço e outra na perna; um atolamento até ao pescoço no brejo das imbaúbas; muitas surras nas ruas do arraial e nos pagodes da roça; um coice de mula; uma chifrada de vaca parida de novo e uma picada de jaracuçu; muitas ferroadas de marimbondos e mangangás; uma dentada de cachorro zangado; sem contar os dentes quebrados em brigas, os desaforos e pouco-casos, o sangue derramado na poeira, nas pedras e nos vegetais das quinze bandas regionais. Agora, exausto na recapitulação das sucessivas refregas, ele se detém, amuado na canseira, tossindo e coçando a cabeça, rodeando o olhar abismado nas portas internas e externas da Venda, sem fixar-se nas pessoas, como se elas não estivessem ali. De repente agita-se freneticamente, acossado pelos íntimos demônios, chamando atenção dos fregueses da venda com o palavreado de sua paranóia: - Sei que me ouve e me olha detrás da porta, ó perseguidor de meia-tigela! – Assim ele clama, aziago e extrovertido, levantando-se resoluto, a falar ao vazio de uma das portas da rua: “Por que não aparece no claro do dia, e não cai aqui no osso do papai?! Vem agora, se quer mesmo dar cabo deste pé rapado, faça-o agora mesmo, diante de tantas testemunhas! Vem agora, se é mesmo o maludão todo poderoso, com essa cara de chifres pontudos, com essas mãos de dedos pontudos e zunhudos. Vem!” – Ele repete, fuzilando o vazio com seu olhar estarrecido. “Pensa que tenho medo docê, assim no claro e na presença de testemunhas?! Vem! Cai no osso aqui do papai, que tem tutano para estrebuchar essas pelancas nojentas de sua infeliz pessoa!” - E assim dizendo, começa a tremer como uma vara verde, entre a porta da venda e a calçada da rua. Afasta-se um pouco, ainda ressabiado, coça a cabeça, flexiona as pernas bambas, alcança a via pública – e logo começa a correr, a correr desabaladamente pela rua afora, como se atrás de si corresse um touro brabo ou uma manada de diabos enfurecidos. E, correndo, olha para trás, e esmurra o ar, gritando: “Vai à puta que te pariu, filho de uma puta! Não tenho nem um pinguinho de medo docê, viu?! Aqui procê, seu vagabundo dos quintos dos infernos!” – exclama, exibindo o muque dos punhos fechados, a correr, sempre a correr, perseguido, até desaparecer no final da rua.