segunda-feira, fevereiro 20, 2012

O CASARÃO QUE MUDOU DE LUGAR

O casarão do meu bisavô paterno, imponente e faustoso, era, na minha infância do Desterro, uma das edificações remanescentes da época áurea do colonialismo brasileiro. Construído sobre um alicerce de três metros de altura, exibindo na frente e nos fundos uma escadaria cimentada de muitos lances, de tal maneira que propiciava um espaçoso porão que servia de senzala para abrigar dezenas de escravos de ambos os sexos. A escravidão, na época, era o braço movido pela vontade dos proprietários. Os escravos cuidavam do curral, do chiqueiro e da manga dos porcos, dos pastos e roças e da provisão de mantimentos e madeiras e lenhas de serventia de tapumes e fogões de cozinha. Sabe-se hoje, em estudos de pesquisa científica, que naquela época os escravos não eram tratados humanamente, mas como reles autores de mão de obra a serviço da classe dos proprietários rurais e dos grandes e pequenos comerciantes das vilas e arraiais. Eram vendidos e comprados em todas as oportunidades e necessidades a preço muito alto. Mesmo assim a classe pobre dos brancos não renunciava ao direito de possuir um serviçal para toda obra, em qualquer circunstância, com as a obrigações, inclusive, de carregar, descarregar e lavar os urinóis dos familiares da casa e higienizar as latrinas e banheiros nas residências dos mais abastados. Assim sendo o escravo de um pessoa rica sofria menos do que o das pessoas pobres. Essas quotizavam-se para comprar um escravo, o qual passava a servir a dois, três, quatro proprietários na proporção de tantas horas por dia para cada um. Assim o pobre coitado trabalhava dia e noite em três, quatro, cinco casas, carregando lenha e água, lavando roupa, limpando tudo e fazendo tudo que cada um de seus donos mandasse. O casarão e seus pavimentos e seus adereços: mobiliário importado, juntamente com os relógios de paredes, as imagens sacras, os castiçais, lampiões e lamparinas, as camas de dosséis, cadeiras de palhinhas, prataria e talheres de porcelana e cobre, os pisos em mosaicos nas paredes e alpendres, os fogões de ferro fundido, alimentados de lenha e carvão, com as chaminés enfumaçadas, e outros requintes da residência aristocrática. As mulheres em suas sedas, linhos e cetins, colares e anéis e sandálias de luxo; os homens com suas botinas, brins e casimiras, chapéus e relógios de algibeiras. O terreno conexo ao casarão começava depois da escada que chegava ao terreiro e às áreas de secar café, feijão e arroz, ladeadas por bicas de água potável – e à certa distância os paióis, o galinheiro, o curral, o chiqueiro e a manga dos porcos. Tudo isso num dos lados do quintal; no outro lado frutificavam as árvores de mangas, laranjas, goiabas, bananas, ameixas, uvas, abacates, cajus, jabuticabas e outras espécies. Depois dessa demarcação começavam os terrenos das capoeiras (nascentes das águas) e das pastagens, a sumir de vista. O dono era, então, poderoso e rico. Passou o tempo, levando a vida das pessoas, modificando os usos e costumes, trazendo as novidades e o aumento da população mais pobre. Lembro-me, ainda em criança, da época do casarão em processo de decadência, alugado a um casal sem filhos, egresso da civilização: ele um perito em vários ofícios: relojoeiro, sapateiro, ferreiro, barbeiro; e ela, fogosa e bonita, apenas cuidava da casa, com uma particularidade: não usava roupa de baixo – e assim fazia a festa sexual da meninada masculina que, com a desculpa de caçar biloscas e frutas no quintal, adentrava a área do porão e de lá, cada um mais embevecido que o outro, ficava debaixo das gretas do soalho, namorando as “partes” da mulher, andando no meio das inumeráveis frinchas da parte de cima do tabuado. Assim passava o tempo, até que um dia, chegou um bitelo de um caminhão procedente da cidade de ITU, estado de São Paulo, com um senhor identificado como o novo dono do casarão (isso muito depois do falecimento de meu bisavô). Ele e seus ajudantes tiraram fotografias de toda a casa, parte exterior e interior e telhado, nos mínimos detalhes, incluindo toda a parafernália de quadros, esculturas e objetos de serventia. Fotografaram toda a edificação e logo começaram, jeitosamente, a retirar todo o material (pedras, tijolos, madeiras, telhas e tudo que ainda restava no prédio) e acomodá-lo na enorme carroceria do caminhão. Concluído o enorme trabalho o caminhão partiu na direção da cidade paulista , onde o comprador (segundo as palavras dele) ia remontar o casarão, tal como era na origem. Estive outro dia lá na grande e bela cidade paulista, para ver se encontrava a casa transplantada, mas não consegui. A cidade é enorme, some de vista. Mas conserva elegantemente muitas edificações em estilo colonial. Voltei encantado com a cidade, mas sem encontrar o que procurava com tanta saudade.