terça-feira, maio 02, 2006

AS ÍNDIAS, NOSSAS MÃES

A simples proximidade do branco portando suas doenças imanentes e crônicas (a sarna, a coriza, o macuco, a furunculose, a gripe, a enxaqueca, a tuberculose) contagiava o selvícola– e o que no branco às vezes não passava de um incômodo, ao índio era uma sentença de morte. E desde logo ele percebeu que não podia respirar o mesmo ar do adventício permanentemente infectado. A contaminação dizimadora começou assim, involuntariamente, mas depois, interessando ao branco a ausência do incompatível irmão no raio de suas ações, as doenças passaram a ser aviadas como receitas biológicas através principalmente dos vírus da varíola e do sarampo. Estas e outras doenças eram então repassadas pelos colonizadores através de roupas e objetos pelas pessoas portadoras dos males, repassadas como presentes de grego aos incautos. Aí a “coisa” pegava: um índio contaminado transmitia a doença a toda tribo. Foi um dos maiores genocídios da história da humanidade: de uma população estimada de seis milhões em 1500, hoje sobrevivem apenas cerca de trezentas mil - e sabemos que a tendência demográfica é, desde sempre, aumentar muito e nunca diminuir tanto. O milho a mandioca a batata o guaraná o conhecimento da flora e da fauna as técnicas de subsistência agrícolas e artesanais a culinária baseada nos bens de raiz da terra a medicina rústica, a rede de dormir as danças e folguedos, as artes marciais a identificação telúrica a não-acumulação dos bens de capital...: seria o Brasil uma nação principalmente indígena? Seriam os índios superiormente civilizados antes de pisarem o torrão novomundista então asselvajado? Berta G. Ribeiro, (no livro “O Índio na Cultura Brasileira”), estudiosa da aplicação cultural indígena, cita outros estudiosos propensos a avalizarem essa possibilidade do milenar transplante de plagas asiáticas em remotas épocas da imemorial (?) civilização humana. O corpo desnudo os pés descalços a pisar a rodilha de cobra e nos estrepes e espinhos os ganchos de forca no matareu as unhas de gato as folhas repelentes as moscas os insetos as sanguessugas a pele tenra cobrindo o sangue quente a carne os nervos as vísceras os pêlos os poros as cicatrizes dos ramos e vergões do sol-e-chuva na ventania na geada ...qualquer momento feliz no entanto era mais longo. A nudez apetecia?, descrentava? a água do rio sim era uma cachoeira a penicar na libido muito mais do que na rede muito mais do que na grama a cópula era uma das refeições da alma horas depois o corpo agradecia no sono espichado a deus-dará no amalucado sonho do que será-será do bem e do melhor momentaneamente palatável. Escapando aqui e ali do fragor atmosférico, da avalanche das águas, dos mundéus e alçapões da própria vegetação, dos répteis peçonhentos e dos animais ferozes, eles folgavam nos crepúsculos das manhãs e das tardes e nas noites enluaradas e dias ensolarados das savanas, montanhas, florestas, clareiras, fontes, cachoeiras e cursos de água limpa e doce : o solo permeável e sempre recoberto o cultivo itinerante: a recaptura dos nutrientes a interromper a propagação de pragas, a manter a pluviosidade e a insolação como fertilizantes aéreos... A domesticação das plantas é a maior e a melhor herança cultural deles. Só para se ter uma idéia aí vai a menção das mais conhecidas: abiu mapati sapota pupunha abacaxi cipó-babão milho feijão mandioca batata cará inhame mangará ária amendoim fava banana taioba pimenta mamão abacate maracujá biriba cacau goiaba graviola toá muari ingá miriti pequi jatobá tabaco urucum algodão cabaça abóbora junco coca basbato paricá maracujá melão açaí pacoba araçá gabiroba bacopari mamacadela jabuticaba cagaiteira pitanga ameixa uva cravo canela cravina beterraba espinafre alface couve cardo nabo rabão boldo mostarda cebola melancia castanha jaca centeio trigo hortelã poejo alfavaca seguelha guandu cana fistula baba-de-boi lentilha ervilha alho quiabo lúpulo tamareia romeira marmelo laranja jiló lima limão mexerica sândalo berinjela incenso coentro cenoura funcho amor-deixado salsa cebolinha tomate lobeira arroz algodão caroá erva-mate pinhão babaçu ou pindoba butarrei erva-cidreira sassafrás piteira manga cereja algodãozinho murici amburana cana de açúcar chapéu-de-couro coité mogango japecanga ananás cidra losna catuaba moranga jambo articum negramina paineira figo pêssego bilosca cariru repolho orapronóbis samambaia gravatá mamona jurubeba mentrasto bambu,cipós de são joão e de timbó embiras couve funcho: plantas e mais plantas cultivadas nas apropriadas das matas e campos e cultivadas nas apropriadas cercanias domésticas e usadas dias e noite na alimentação, na construção de moradias, nos meios de transporte, nos utensilhos domésticos e de trabalho, nos corantes e na ornamentação, nos venenos e remédios, nos usos mágicos e lúdicos. O botânico Paulo Cavalcante e Protásio Fritkal coletaram com os índios Tiriyó 436 espécies de plantas em geral, das quais 328 possuem valor medicinal nas folhas, nos sumos, nas hastes, nas raízes, nas talas, nas frutas, nas cascas, na madeira, nas flores e nas frutas; e em 41 delas em tudo delas. A protocélula brasileira se plasmou e espraiou (a escritora Berta é quem diz) antes da chegada do negro africano em 1538. O elemento onipresente da civilização brasileira, a chamada cultura caipira, realizou-se através do cruzamento do português com a índia – e só depois da chegada do negro é que a miscigenação ampliou com o surgimento do mulato e do cafuso. A vida em comum dos índios em suas aldeias era tranqüila e até um tanto feliz (quem sabe?) no regime de liberdade recíproca de ninguém esconder nada, pois não havia o tal de furto, tão danoso e comum entre os seres ditos civilizados. Se um índio jogava pedra no vazio ou gritasse no meio da noite, ninguém se irritava ou recriminava, ninguém deduzia que o gritador estava doido: ele fazia aquilo porque gostava de fazer aquilo. E ninguém se amolava nem se ofendia. Algum argumento racional para justificar a propalada insubmissão do índio? Ao contrário da beatitude cristã (diz Berta), que prega “a humildade e o conformismo, as crenças e os heróis míticos do autóctone reforçam a etnicidade, o orgulho tribal, a resistência a todas as formas de opressão étnica e classista”. Se todos na comunidade são justos, tudo se mantém na estabilidade perdurável e assim não há lugar para a hierarquia do abuso e da ganância, do desfeito e da desfaçatez, do chicanismo e do arrivismo, do desgastante esforço para conquistar e ostentar as láureas do sucesso, as comendas do status. AS PERDAS 1 - Dos Idiomas. O colonialismo cultural foi responsável, juntamente com a extinção física de tantas tribos, pela imposição de apenas um idioma a cerca de quase 700 tribos que falavam seus próprios idiomas (uns filiados ao tronco tupi, outros a outros troncos, outros filiados às famílias lingüísticas isoladas). O processo da substituição começou pela precária adoção do idioma nheegatu em 1616 e depois pela portugalização, até que a hegemonia da língua portuguesa veio prevalecer, isso já no século dezenove. Uma pena tal perda de tantos idiomas. Na verdade, nem sabemos, nem imaginamos o que perdemos de sonoridade, colorido, comunicabilidade e ternura humana não só em termos de linguagem mas também de convivência. Em 1839 o viajante Nicol Dreys encanta-se com o guarani, idioma usual das Missões no rio Grande do Sul: para ele língua “sonora, eufônica, extremamente pitoresca”. 2 – Das Terras. A partir da segunda metade do século vinte as tribos remanescentes passaram a sofrer grandes pressões e tormentos em suas terras demarcadas, após a abertura das rodovias Belém-Brasília, Transmazônica, Perimetral-Norte, em seu alvoraçado movimento migratório. A ocupação do território se fez mediante a distribuição de grandes latifúndios e poderosos grupos financeiros nacionais e multinacionais dedicados à agropecuária e à exploração mineradora e madeireira, “uma reserva de domínio de imensas extensões de terras, do tamanho de países europeus, para especulação e para efeito de incentivos e isenções fiscais” (conforme página 166 do livro de Berta, citado). Foi mais ou menos nessa época que disseminou-se mundo afora o humilhante jargão de que o Brasil não é um país sério. Índia, teus cabelos nos ombros caindo negros como a noite que não tem luar Teus lábios de rosa para mim sorrindo e a doce meiguice deste teu olhar... (M.Ortiz Guerreiro e J.Assuncion Florez). Vingança, retaliação, são palavras que não constavam no dicionário da cultura indígena. Mesmo castigados mortalmente pelos colonizadores, os índios deram o Brasil aos portugueses: Tibiriçá salvou a nascente Villa de São Paulo em 1562; Araribóia salvou o Rio de Janeiro, ao assumir o posto de Estácio de Sá, ferido, no comando das forças que expulsaram os franceses. Poti (Henrique Camarão) foi uma espécie de El Cid em Pernambuco, no episódio da expulsão dos holandeses; e Amanaju (é o historiador Diogo de Vasconcelos que afirma) “conquistou o Maranhão e deu a Portugal o império do Amazonas”. Uma pesquisa de geneticistas da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) está causando surpresa aos estudiosos da miscigenação brasileira. A quase totalidade dos genes brancos brasileiros de hoje (revela a pesquisa, comentada por Marcelo Leite, editor de ciência da Folha de São Paulo), herdados por via paterna vieram dos portugueses; mas o que foi recebido por linhagem materna, 60% veio de índias e negras: 33% de indígenas e 28% de africanas. Os portugueses que chegaram logo após o Descobrimento “aqui se juntavam com as indígenas, num primeiro momento, e só depois com as escravas negras”. Assim a teoria da minimização da herança genética indígena cái por terra, pois se a população atual contém um terço de haplótipos indígenas (mt/DNA), isto quer dizer aproximadamente 50 milhões de linhagens ameríndias, dez vezes mais do que quando a Terra dos Papagaios foi descoberta. A conclusão é de Sérgio Pena, chefe da pesquisa intitulada “Retrato Molecular do Brasil”: “a presença de 60% de matrilinhagens ameríndias e africanas em brasileiros brancos é inesperadamente alta, e por isso tem grande relevância social”. Não está, pois, passando da hora de um nosso tardio e reverente reconhecimento? Depois de tanta vergonha genética que a humanidade tem passado (a classificação das raças em valores negativos e positivos, as intenções frankesteinianas de clonagens e de mapeamento de genomas..., meu Deus, a constatação da beleza e da verdade não está justamente na súmula da unidade?), está na hora do brasileiro cair em si e assumir a tríplice formação biológica de seus seres e de esquecer a bobice preconceituosa da chamada reunião de três raças tristes? Tristes na opinião de quem quer entristecê-las, menosprezá-las, colonizá-las e tirar delas o sabugo da alegria inerente ao ser humano de toda parte.