SAGRADAS ESCRITURAS E PROFANAS LEITURAS
“O Priorado de Sião acredita que Constantino e seus sucessores do sexo masculino conseguiram converter o mundo do paganismo matriarcal para o cristianismo patriarcal através de uma campanha de demonização do sagrado feminino, eliminando a deusa da religião moderna para sempre” – página 134 do romance Código Da Vinci, trad. de Celina Cavalcante, editora Sextante). No capítulo das aversões e predileções ao longo de minhas torrenciais leituras, tenho encontrado mais deméritos que méritos nos propalados best-sellers, isto porque os autores que visam o sucesso fazem demasiadas concessões à leitura fácil da linguagem de lugares comuns e bonitos, palatável e digerível, priorizando o entretenimento muitas vezes através do engodo e da contrafação, virando as costas à verdadeira literatura, que é algo bem mais complexo na esfera da criatividade, que não pode ser confundida com a leviandade. O romance “Código Da Vinci, de Dan Brown, tem os ingredientes da leitura entretecedora e enternecedora, consecutiva e estimulante. Você começa a ler e não encontra o momento de parar. É uma esperta e lúcida incursão nos segredos das crendices postergadas por decisões conciliares e autos-de-fé promovidos pelas classes dirigentes das religiões seculares, que abala o coração e a mente do leitor interessado na história das relações humanas e ao quadro dos mistérios da transcendência. Faz pensar e nesse ponto aproxima-se do que de melhor uma obra de arte pode fazer para entreter e inebriar. Avistamos, tropeçando e volteando, as relíquias e símbolos, os orbes e signos gráficos e escultóricos, ressaltando aqui e ali as menções ao processo de demonização feminina (uma distração perigosa que incomoda), ao nostálgico busto de alabastro da deusa Isis, às metáforas e alegorias e hipérboles da fé, à intolerância do Opus Dei, e de vez em quando, aos sonhos e canções e sussurros das rosas. Os temas cruciais da cristandade são debatidos sob o viés de uma constatação dialética e não sectária. Ainda bem. Uma espécie de simpósio diletante, no qual as questões em debate carregam propositalmente os laivos da tensão existencial, instaurando, assim, um cenário de apreensão, um certo prenúncio de terror apocalíptico. Brown não atinge a profundidade hospitaleira de um Humberto Eco, mas suplanta os diluidores do manancial dos tesouros dos sistemas de crenças consagrados e sigilosos. Com muita argúcia, ele reabilita a imagem ponderada de Maria Madalena, repetindo que ela nunca foi prostituta, afirmando um tanto aleatoriamente que ela foi casada com Jesus Cristo, revelando precisamente sua descendência real (ela era da casa de Benjamim, e Jesus da casa de David, ambos oriundos da mesma realiza bíblica, uma transposição dos divinos predicados de Isis, o mistério sob o prisma da beleza. A tentativa de conciliar as metáforas e símbolos, as alegorias e hipérboles da fé religiosa com o sentido literal do nacionalismo, é o esforço dominante do autor, que habilmente leva o leitor até à última página, sem bocejar, sem engerizar. Aí reside o maior valor da obra. Um lúcido intróito aos domínios da obscuridade. Obviamente o entrecho está repleto de idéias feitas, mas, pelo menos, desentranhadas do dogmatismo. As idéias feitas e a linguagem transparente fazem parte da mercancia livreira, que repugna, obviamente, os autores considerados “difícies” como Proust, Kafka, Joyce, Beckeet, Faulkner. É uma leitura profusa e instigante, que “agrada” mais pela linearidade silogística de prenunciadas conclusões, à moda dos chamados romances policiais. Mas ao leitor é sugerida a busca de outras fontes, já que a própria obra, sendo literária e não científica, se exime de tornar-se uma fonte crível para novas articulações. Sabemos que toda clareza no conhecimento é um tanto suspeita, já que sempre traz em si algumas nuances de nublação. E um certo desafogo logo vem quando fica claro que o autor se vale da história da civilização para afirmar que o Imperador Constantino, em 325 d.C., é que fez a colagem dos mais de 80 evangelhos gnósticos para unificar Roma sob uma única religião, defenestrando de vez o paganismo de suas múltiplas faces, aproveitando muito dos fundamentos desses evangelhos, canonizando por assim dizer o sincretismo e seu caudal ritualístico. Toda a fusão das religiões foi promovida no famoso Concílio de Nicéia. Onde estão as brisas de antanho, os mestres e mestras de outrora? E as deusas e deuses de tantas culturas sociais, em que olvido raso ou profundo estão sepultados? Eles fazem muita falta à nossa atmosfera, não? Dos deuses ficou o Deus Das deusas, nem sombra ficou. O que as afanadas divindades fizeram de mal a nós, eternos penitentes? Por que nem se fala mais neles e nelas? Por que o Sagrado Feminino foi assim censurado? Meu Deus, minha Deusa Minha Deusa, meu Deus Quem não vê o que acabou acontecendo? : a Deusa morrendo, a mulher passou a sobreviver de teimosa. É a cara-metade que só tem olhos para chorar? Só tem boca para soluçar? E então? e então o machista a posteriori virou um simples onanista? E então, feminista ressentida: que tal recuperar o aroma da brisa de antanho? Por que as religiões, tanto a cristã como a muçulmana, excluem a mulher de seus orbes? Por que as religiões ficaram nas exclusivas mãos masculinas? Por amor? Por temor? Os homens (e não as mulheres enquanto femininas) encontram na violência a política (o mandonismo) e justamente aí perdem a poesia da vida e do mundo. As mulheres (enquanto femininas) encontram na piedade a poesia, elas as piedosas mulheres rumo ao calvário, as musas no apogeu e no epílogo helênico, pecadoras no prefácio judaico, e depois e até hoje em dia: brutalmente relegadas à prisão domiciliar e aos forrós dos prostíbulos na irrisória modernidade dos novos tempos. Que trapalhada, heim? Por que ainda hoje quase toda família reserva à mulher uma prosaica, uma humilhante posição subalterna? Elas que não crucificaram Jesus e sim choraram e velaram a via-sacra Dele, nada podendo fazer a não ser chorar e chorar. As piedosas mulheres: ei-las no martírio e no sepulcro: a Maria, Nossa Senhora das Dores, do Desterro e das Graças, acima das palavras e dos sentimentos; Maria Madalena, a que sempre ficava do lado direito Dele nas reuniões, a que sempre merecia Dele um olhar especial, a beneplácita ancestral dos meronvígios, a que mais de perto testemunhou a Ressurreição; Joana, a esposa de um Procurador de Herodes, confiada no instinto e na intuição; Maria, a mãe de Tiago Menor e de José, a que Jesus havia salvado das mãos de Satanás; Salomé, a mãe amantíssima dos filhos de Zebedeu, fiel seguidora da via-sacra do Nazareno, a que comprou bálsamo para ungir o corpo Dele; Marta, irmã de Maria Madalena e de Lázaro, afadigada na lida da casa, preocupada com o ensinamento da irmã ciosa da beatitude misericordiosa; Berenice, a que anos a fio padecia do fluxo sanguíneo e que em vez de falar e de pedir, tocou na fímbria da roupa Dele, sabendo que do toque sairia Dele a virtude, e assim ficou curada para o resto da vida; Inonimada, a prostituta, que ajoelhada atrás Dele, banhou-lhe os pés com as próprias lágrimas, enxugando-as em seguida com os próprios cabelos, ungindo-O para merecer o perdão de seus pecados e ouvir Dele as enternecidas palavras do Amor.
Bibliografia: O Código Da Vinci, de Dan Brown; Quebrando o Código Da Vinci, de Darrel L.Bock; Fragmentos dos Evangelhos Apócrifos, de Padre Lincoln Ramos; Novo Testamento, versão segundo o texto original, de Padre Matias Soares, especificamente nos Evangelhos: Lucas 7-36, 8-2, 8-3, 10-38, 24-10, Marcos 5-25, 15-40, 15-47, 16-01, 34, Mateus 9-22, 20-20, João 1-14, 11, 12-2.
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