sábado, abril 29, 2006

UMA INFLUÊNCIA QUE EXORBITAVA

Texto inédito de uma entrevista que o escritor Lázaro Barreto concedeu a um grupo de estudantes de Santo Antônio do Amparo, em 1997, depois da publicação da correspondência recebida de Carlos Drummond de Andrade no Jornal HOJE EM DIA, de BH, através do poeta Alécio Cunha. 

Pergunta: Como foi o começo de sua correspondência com o Poeta? Resposta: Partiu de um ato consciente. Escrevi a carta como se no momento não pudesse fazer outra coisa. Mas, por que escrevi logo a ele?, porque estava tão drummondizado literariamente que a influência exorbitava do exercício literário e impregnava minha própria maneira de viver. A quem, pois, deveria recorrer? Parece que ele entendeu o problema e respondeu-me prontamente, a seu modo, incisiva e afavelmente. Pergunta: O que mais despertou seu interesse na obra dele e não na de outro autor? Resposta:Eu vinha lendo poesia brasileira e estrangeira (traduzida) desde a primeira juventude. Aos 29 anos de idade (em 1963) entendi que a literatura brasileira dispunha de duas vertentes principais, a do estoicismo e a da dissipação. De um lado, depois dos parnasianos, estavam o Bandeira, o Drummond, o Graciliano, e Outros, até culminar no João Cabral de Melo Neto, através do qual começa uma nova forma dentro mesmo espírito conteudístico. Do outro lado estavam alguns integralistas, o Oswald de Andrade, os antropofágicos e os precursores do tropicalismo, toda uma linha mimética, até culminar no concretismo, a partir do qual desponta uma nova fornada de experimentalistas. O que estou a dizer é meio-esquemático, mas na verdade nunca conseguimos escapar do dualismo, na arte e na vida, ficamos sempre entre a cruz e a espada, a poesia e a política, a piedade e a violência, a probidade e a retórica. Penso que optando pela influência de Drummond, escolhia aquela “melhor parte” de que falam os evangelhos: a purgação da cruz, a verdade na beleza da poesia, uma probidade cristã que é bem mineira e muito drummondiana. Pergunta: a correspondência trouxe-lhe benefícios, como escritor? Resposta: Claro, benefícios íntimos, inicialmente. Que depois levaram-me a uma espécie de exteriorização comunicativa, uma influência mais impulsiva e ativista, a colaborar na imprensa de Divinópolis e até mesmo na fundação, com amigos, de jornais literários, ampliando o círculo de relações e de leitores. Aos poucos, despreendendo-me do casulo intimista, sentindo-me mais à vontade, publiquei (até 1997) oito livros, dois deles de ampla circulação, publicados e distribuídos pela Vozes e pela Guanabara, com ótima repercussão crítica e de público. De forma que hoje meu trabalho visa responder minhas perguntas, preencher os meus vazios. Ainda agora (1997), que estou com cerca de dez livros inéditos engavetados, por falta de editora, estou intimamente feliz, pois são trabalhos que vieram por necessidade , tentativas de preencher lacunas e carências da vida. Mesmo que nunca sejam publicados, sinto que estão ali, gritantes de muita vida, no mutismo das gavetas. Aí é que reside o que você chama de benefício, do modo como o entendo. Se tivesse procurado outro autor, poderia dizer o que digo da influência drummondiana? Teria fôlego para escrever vinte livros e, mesmo na quadra dos sessent’anos, sentir que ainda posso escrever mais vinte, que ainda estão no limbo, informes na escuridão, me chamando? Pergunta: Por que não consegue editoras para publicar seus livros inéditos? Resposta: Vivo longe dos grandes centros, não faço lobbie, nem mesmo sei insistir numa tarefa ingrata. As poucas vezes que tenho tentado, não tenho logrado êxito. Os editores não entendem e não aceitam que eu escreva romances, contos e dramas teatrais em versos. Será que pensam que estou tentando inovar, sem base para tal? Sei que quase toda a boa literatura da Antiguidade era escrita em versos (e T.S.Eliot recomendava essa prática nos tempos modernos, alegando que até uma bula de remédio pode ser redigida em versos) – e aí ainda estão Homero, Dante, Milton, poetas que também eram romancistas. No meu caso, guardo as proporções: utilizo o verso livre apenas como forma narrativa e não com a intenção de escrever um poema longo com o nome de romance. Sei que a verdadeira poesia é lavoura de outros trabalhadores. Pergunta: Conta-nos o episódio do desaparecimento dos originais de seu primeiro livro, que mandou ao Poeta. Resposta: Ele, que tinha dado as impressões sobre os originais numa carta, escreve outra para desculpar-se, diante do desaparecimento da pequena pasta. Eu não tinha cópia, não dei a menor importância ao sumiço, uma vez que o trabalho era apenas uma inepta tentativa de construir um canivete sem lâmina e sem cabo. E foi nesta oportunidade que aprendi dele mais uma lição que, publicando a carta, fica extensiva a todos, na parte em que ele diz: “não sou partidário do óbvio em literatura, mas procuro sempre, instintivamente, uma chave para penetrar o mistério, mesmo sem pretensão de decifrá-lo”. Pergunta: Alguma carta que lhe tenha comovido mais? Resposta: A de 14 de março de 1983, com os dizeres: “Seu poema, que o Suplemento Literário do “Minas Gerais” publicou, penetrou fundo no coração deste octogenário. É das coisas mais belas e magnânimas que já recebi, sem tê-las merecido”. Daí se vê que a partir de certo tempo a correspondência literária das primeiras cartas já tinha evoluído para uma relação mais humana, traindo uma certa afinidade, também do lado dele, mestre, e não apenas de minha parte, discípulo. Pergunta: Qual foi o período da correspondência e o número das mensagens? Resposta: 07 de outubro de 1963 a 11 de agosto de 1986. A quantidade: 11 cartas, 13 cartões e 8 poemas especiais. Ao todo, 32 peças, algumas datilografadas e outras manuscritas (alguns poemas são desenhados caligraficamente e, até, coloridos). Pergunta: Algumas sugestões ou comentários dele sobre seu trabalho literário, que então desenvolvia em Divinópolis? Resposta: Sim, muitas. Ele sempre cumprimentava e até celebrava um tento literário que eu acaso lavrasse. Assim foi quando publiquei cada um dos livros (ao todo, cinco), naquela época, e também por ocasião dos lançamentos dos jornais literários que fundei e dirigi aqui, com alguns amigos.Ele elogiava porque constatava a validade do nosso afã de chamar atenção das pessoas do povo para o reino maravilhoso da literatura. Pergunta: Chegou a conhecê-lo pessoalmente? Resposta: Só através de publicações e da correspondência. Nunca fiz vida literária nem freqüentei rodas, nem mesmo em Divinópolis. Sou, como ele, um tanto introspectivo. Mas fui duas vezes à sua casa no Rio: na primeira vez, não me anunciei e houve o desencontro. Da segunda vez, fui com Inês, minha esposa, e fomos amavelmente recebidos pela esposa dele, com quem proseamos, agradavelmente, um bom par de horas. Ele estava ausente porque tinha ido visitar a filha, na Argentina. Uma sua irmã tinha morado em Divinópolis, ela informou. De minha parte, informei-lhe que não era a única pessoa de Marilândia, um simples arraial, que nutria a honra de merecer a amizade do Poeta: um primo de meu pai (o Jacy Navarro Barreto, Contador da Secretaria das Finanças do Estado de Minas e Chefe Administrativo da CEMIG) era casado com uma prima dele, a nossa prezadíssima amiga Lourdes Navarro Drummond; e também o grande homem público, Gabriel Passos, foi colega e amigo dele, na juventude de ambos em Belo Horizonte – era também um marilandense plenamente assumido (tenho provas documentais em meus arquivos). Pergunta: Você manteve, simultaneamente, correspondência com outros escritores? Resposta: Sim, com muitos, principalmente quando dirigia os jornais literários “Agora” e “Diadorim”, que eram remetidos para autores novos e consagrados de toda parte, do Brasil e do estrangeiro. As respostas choviam e o proveitoso intercâmbio era mantido, não só da redação com os colaboradores, mas entre eles próprios numa boa e criativa convivência à distância. Depois, mesmo com a cessação da circulação dos jornais (cada um teve vida de apenas dois anos, cada), algumas amizades luminosas permaneceram e atravessamos anos, como as de Ana Hatherly, grande poeta portuguesa, e Pavla Lidmilová, escritora de renome e tradutora para o tcheco de obras de Guimarães Rosa, Murilo Rubião e Clarice Lispector. A correspondência postal é também uma boa maneira de encurtar as distâncias, estreitar as afinidades e dinamizar as comunhões.