quinta-feira, abril 27, 2006

A OLHAR PARA O CÉU

“Não façamos da lei espantalho, arvorando-o logo de início para espantar as aves de rapina, deixando-o, depois, imóvel, até que o hábito faça dele seu poleiro e não o objeto de seu terror” (da peça “Medida por Medida”, intróito do segundo ato, trad. de F.Carlos Medeiros e Oscar Mendes, Edit.Abril, 1978, São Paulo, SP). Galhardo maneiroso satisfatório fabuloso amando Deus e todo mundo a fugir de Deus e de todo mundo (uma de suas lépidas maneiras de amar?) escapando daqui e dali para encontrar esta, aquela e outras mulheres: a graça na graça do melhor de si mesmo: dava a vida pela que estava em seus braços, mas se ela sumia de vista, ele não sofria um tiquinho sequer. Assim ele era, como sempre estava: a cara mais limpa do mundo, a perdoar as próprias possíveis culpas: “ainda ontem ele morria por mim, e hoje nem me reconhece mais”, queixavam a donzela e a dama na quentura e na frieza daqueles airados dias. Uma querida amiga (minha), Ana Hatherly, poeta portuguesa casada com um nobre inglês, disse-me em carta que estivera na casa onde ele viveu em Stratford do Avon, e ficou a imaginá-lo grandalhão e espigado a passar de um lado para outro sob as portas baixas do interior da casa, lépido e fagueiro, com tantas idéias nas palavras ansiosas para ocuparem seus lugares nas linhas dos sucessivos cadernos pautados. Lá no norte de Avon, distante das alheias hipertrofias, na intimidade de uma infância permanente, ele reunia e arquivava os arrepios e os impulsos e os desafogos no meio dos ritos de passagem da cultura popular daqueles tempos naquelas regiões. Assim na linha divisória da juventude, ele aos 18 anos em 1580 casa-se com a jovem Ana Hathaway (nome quase idêntico de minha amiga portuguesa), então anônima e predestinada, boa e afável companheira e inspiradora, que lhe deu três filhos, um dos quais morre aos 11 anos de idade, forçando-o a iluminar-se no ímpeto e no estro para escrever HAMLET, um sobrehumano arroubo de arte, prenunciando aí o prodigioso surto de fervor criativo, os albores da plantação e da colheita de tantas obras-primas como OTELO, REI LEAR, MACBETH, que o século quinze viu as primeiras representações e ninguém jamais verá as últimas. Foi assim que o teatro elizabetano refloresceu nos umbrais da Europa católica a cultura clássica através do olhar anglicano do impávido Shakespeare. Ele tirava do escuro o vulto luzidio que tomava conta do palco e sacudia as platéias.... Abrir seus livros, ver deles os filmes e peças é ver e ouvir mensagens dos páramos, é sentir voar do peito o coração levemente, docemente abalroado... Assim nele é o amor: a hera fêmea que se enrola nos dedos da casa do olmo, as negras liberdades da virtude, os sulcos sangrentos do chicote que enfeitam o corpo como se fossem rubis... O nome do amor no céu da boca a Rosalinda a pendurar odes nos espinheiros elegias nos sarçais, manhas nos modos... Ele que em Londres foi guardador de cavalos freqüentador de tavernas, nele jorra a fonte dos poemas que alimentam a posteridade de tantos criadores de poemas. Quando as aves da mata se acasalam, aí começa a dissonância harmoniosa do trovão com o relâmpago na etérea moradia de mais um nume tutelar... O fino amor que ouvir com os olhos deve quando a moça embalsama os ares noturnos com os olhos aurorais e a essência dos rosais. Mais que os reis e rainhas, ele legou-nos o que há de melhor no histórico império britânico: trinta e sete peças!, dezenas de sonetos!, tudo aureolado e vívido nos sobejos e nas significações... Quem um dia disse-me que ele não foi meramente um ser normal, mas sim um exemplar da espécie humana interligado aos fenômenos da natureza? Pois é. Tal é como só podia ser quem fez da sombra ambulante da vida uma luz que amplia a visão do mundo. O leitor quer um exemplo de acepção mais que recente? Bárbara Heliodora, profícua estudiosa de sua obra, disse dele que ele a tudo pode perdoar, menos um mau governo. Como epílogo e brinde ao leitor insiro aqui o Soneto dele, que fala do tempo (do TEMPO!), traduzido pelo também poeta Ivo Barroso: “Tempo voraz, ao leão cegas as garras E à terra fazes devorar seus genes; Ao tigre as presas horrendas desgarras E ardes no próprio sangue a eterna Fênix. Pelos caminhos vão teus pés ligeiros Alegres, tristes estações deixando; Impões-te ao mundo e aos gozos passageiros, Mas proíbo-te um crime mais nefando: De meu amor não vinques o semblante Nem nele imprimas o teu traço duro. Oh! permite que intacto siga avante Como padrão do belo no futuro. Ou antes, velho Tempo, sê perverso: Pois jovem sempre há de manter meu verso.