domingo, abril 30, 2006

O SOM E A LUZ DO SUBMUNDO

François Billard, no livro “O Mundo do Jazz”, diz que até à década de 40 a maioria dos músicos norte-americanos consumia drogas leves ou álcool. “De porre você toca melhor”, eles diziam uns aos outros. Mas até hoje a boa música fica em maus lençóis se interpretadas pelas vítimas do álcool, que é ainda pior que a maconha. Beber é destruir o corpo, alguns deles diziam, mas havia entre eles a necessidade de levar uma vida diferente e de reter os sonhos no nascedouro. O alcoólatra e o toxicômano confundem calorias com o calor humano, inconsciência com ausência e quando acordam em si já estreparam de corpo e alma. “Quanto mais duro o despertar, mais frenética é a necessidade de reter os sonhos”, Billard diz. Um trago aqui e outro ali e logo terá que beber um galão inteiro para manter a euforia. Depois o vinho não bastará e alguém recomenda adicionar benzedrina na coca-cola. Aí então o mundo fica mais belo (?), as mulheres mais meigas (?), a inspiração mais generosa (?) – e é assim que se vai às pressas para o pronto-socorro do hospital, como o pistonista Bix Briderbecke interpretado por Kirk Douglas no filme “Êxito Fugaz”. Depois da década de 40 o vício como moda entrou na fauna criminal, fez seus adeptos e estragos. Sempre havia intelectuais pregando uma vida diferente e ligado à parafernália da revolta, que ligava também a um universo mais prosaico, o da miséria dos negros e das minorias numa “América que procurava encontrar sua própria expressão” através da música popular (ragtime, swing, bebop, boogie-woogie, rock’n rol e principalmente o jazz). O alcoolismo propagou a compulsão de beber que é igual a de comer, ou seja, se satisfeita, a pessoa engorda e adoece, se não satisfeita, a pessoa sofre mas cria algo de si em si. Mas o pior do alcoolismo é a herança que deixa, geneticamente: os filhos e netos já nascem com o gosto (a ressaca?) de sal ou de açúcar na boca, exigindo a satisfação da fome e da sede tornadas incontentáveis. Alguma semelhança do jazz de lá com o samba daqui? O jazz, lá, era e é uma espécie de primo pobre da música popular, enquanto que aqui o samba é o primo rico do chorinho, do baião, do xote e de tantos outros estilos e ritmos. O jazz, ainda segundo Billard, era o prolongamento da voz humana, o conjunto de cores que sombreiam a negritude cultural de um país que fartamente alimentava o preconceito racial. Para o jazzmen escrever um arranjo era compor (ou recompor) e para todos os aficcionados a parte escrita da música e a improvisação sempre coexistiram livres e brilhantemente. É preciso estar errado de vez em quando, Louis Armstrong dizia. Não consigo cantar duas vezes do mesmo modo a mesma canção, Billie Holiday dizia. Tudo isso e a odisséia subterrânea dos costumes durante a Lei Seca davam ao negro a opção de tornar-se um músico ou um marginal: o horrendo tornado belo ou mais horrendo ainda. Em termos de popularização, os músicos brasileiros são mais conhecidos nas peles dos cantores e dos compositores, enquanto que lá isso acontece mais com os arranjadores e os instrumentistas. Os ícones do jazz em sua idade de ouro (Armstrong, Charlie Parker, Benny Goodman, Jolly Rool Morton, Glenn Miller, Bessis Smith, Duke Ellington, entre outros) têm a correspondência brasileira (Noel Rosa, Geraldo Pereira, Pixinguinha, Ary Barroso, Erivelton Martins, Aracy de Almeida, Linda Batista, Orlando Silva, Ataulfo Alves, Chico Alves, Lupiscinio Rodrigues etc) na sutileza das invocações e evocações, no aprumo da conjugação da belíssima trindade da harmonia-melodia-rítmo. Dois Gêneros musicais, duas culturas, duas nações em muitos aspectos aparentadas: o jazz quase sempre improvisado e o samba, mesmo o pegado no ar como se fosse um passarinho, é quase sempre composto com letra e música na pauta com as notas e claves e o arquivístico ouvido dos executantes e ouvintes. Duas nacionalidades diferentes, duas línguas diferentes (a nossa com a predominância das vogais, a deles com a das consoantes), duas vertentes musicais que talvez se encontrem numa das extremidades. Mas o samba não deve nada ao jazz (infelizmente não podemos dizer o mesmo de outras (im)possíveis afinidades).