terça-feira, maio 02, 2006

O PARAÍSO PERDIDO

Depois de peregrinar por toda mitologia grega, ele bateu na porta da frente do cristianismo. Timidamente? Resolutamente? É preciso ir longe para chegar perto. Deus só criou o Bem – o Mal é uma corruptela, uma ofensa a Deus pela desobediência do homem. E é por causa da Desobediência que o homem perde a Felicidade. Posto assim parece um pouco injusto, não? Satã, o anjo do mal, não é descrito como ente desprezível, merecedor de ódio e abjeção. Como antagonista do Todo Poderoso, ele não poderia ser um ente medíocre, mas sim o Tentador de Adão e de Eva, filhos benquistos de Deus, os quais, se se sucumbissem a um ser inferior não seriam dignos do Altíssimo. Mas segundo C.S. Lewis, Satã evolui de herói para general, de general para político, de político para espião, depois assume o aspecto de qualquer coisa que espreita pela janela do quarto de dormir ou do banheiro, e depois para um sapo e, finalmente, para uma serpente. Quando ele se rebela e é expulso do Céu e arrojado ao Inferno, a Terra ainda não existia e em seu lugar só constava o Caos. Logo que a Terra passa a existir, povoada de novas espécies de criaturas, iguais ou não muito inferiores aos Anjos, Satã recobra o ânimo e novamente ataca Deus, corrompendo suas novas criaturas, visando ocupar o Céu, agora como mandatário e não mais como subordinado. Do Antro visando o Empíreo, tanto Satã como Belzebu aguçavam os acicates aos descaídos, insuflando a segunda rebelião, agora uma nítida invasão aos sacrossantos recessos. Pois justo não era, não e não era justo o senhor onipotente do andar de cima (acima do caos),no Empíreo mobiliado e refulgente, provido de infindos e variados regalos, não era justo tanta mordomia privativa. Urgia, pois, recomeçar o embate, investir com mais acerto, derrotar os vitoriosos, trocar os lugares: eles, de cima para baixo e nós, de baixo para cima, assim ele dizia e repetia: “vamos logo, cambada dos infernos!” Secundando a palavra de ordem, Belzebu exclamou, desembainhando a faiscante espada: “Que trema e retrema inteiro o Empíreo!” – e a horda ululante abanava, afirmativamente, a cabeçama. Vendo de longe a demoniada evadir dos presídios infernais e tomar de assalto o mundo ainda informe e inocente, Deus previu o que ia acontecer: a Liberdade virar Escravidão;o ser humano, então êmulo do angelical, ao pisar em falso nos limites da liberdade, ia perdê-la como quem perde a cabeça, mesmo estando com ela debaixo do chapéu, acima do pescoço. Encantado, Satã, com o que vê na terra original “o cimo de algum monte alcantilhado as altas torres, os soberbos obeliscos” o país dos infinitos encantos – pois era assim o Paraíso antes de macular-se, porque depois a dádiva e a bênção esfumaram-se e o pecado atrai o castigo e é assim que o real vira fantasia e a fantasia vira um engodo. Satã é transformista, bisbilhoteiro, incansável na maledicência. Ressentido do banimento, invejoso do arrojo edênico e de tudo que perdeu, aciona a vingança, ateando em si o horrendo fogo da ambição, crendo que o amor e o ódio se igualam no cego afâ da vingança. Contempla o Paraíso, salivando os desejos, o Paraíso “que se lhe afigura teatro de floresta de magnífica pompa decorado... Inda de cima elos copados topos dessas sublimes árvores se elevam do Éden os verdes muros, donde avista”, invejoso, nossos primeiros pais em longo alcance. Então despeitado, replica a Deus: Por que proibiu a árvore da Ciência? a Ciência é acaso um malefício? dela pode germinar a Morte? só na Ignorância é dada a Vida? À deriva e no contraponto da arenga, Adão, mesmo louvando a Deus, sente saudades do futuro e já pensa e sonha com uma Outra Metade para completar-se existencialmente. “Neste feliz lugar que à larga temos a abundância de teus mimos que pelo chão se espalham, homens faltando que se goze: mas Tu prometestes que uma raça de nós provinda povoaria a Terra...”. Citam-se flores e zéfiros, divindades e mitos feitos históricos, sítios arqueológicos numes tutelares dos produtos inestimáveis. E Eva na útil inocência daqueles dias, já sonha acordada e dormindo? Adão tenta antecipar o exorcismo e diz à Eva: “espero que acordada fujas do que sonhando tanto te atordoa”. Na verdade Eva era inefável e pudica na graciosa formosura, sua nudez não constrangia os Anjos, mas nela se mostrava mais linda do que nas deusas que se desnudariam nos futuros concursos de beleza da porvindoura Hélade....Ao trajar virtudes, ela dispensava os véus.... Entretanto, em outro plano do contraponto toda aquela beleza atentava o próprio Satã, que não resistiu ao impulso e se revestiu de víbora para assim virar o jogo a seu favor, e atentar quem o tentava. Mas aí vem um interlúdio no qual Rafael narra a Adão a primeira insurreição de Satã e seus seguidores, o inevitável prélio entre os Anjos Bons e os Maus, onde ressaltam o brio, a impavidez, o heroísmo dos invictos Miguel e Gabriel, chefiados pelo próprio Messias: a arte da coragem rechaça Satã e sua vil coorte de volta aos túrgidos umbrais do Orço, vale dizer , às profundezas do Inferno, no combate corpo a corpo, ferro a ferro, lícito e imparcial, saindo vencedor quem soube vencer. Finda a narrativa da refrega, Rafael atende Adão e relata como e porque foi criado este Mundo, que hoje tanto maltratamos: para abjurar o desgaste de Satã e sequazes urgia esclarecer algumas dúvidas e num momento Deus fabricou o Mundo para que um simples casal da estirpe humana o povoasse de ponta a ponta ao longo dos anos e das léguas... Fez-se o céu e a terra e a água e a luz com o dia e a noite e o olhar divino e o firmamento e tudo mais nos detalhes da biodiversidade no conjunto infinitamente circular e logo viu “as nédias focas, os delfins curvados que brincam e pulam nas macias ondas ........ aqui tens as múltiplas espécies disponíveis ...... mas da árvore que o Mal e o Bem revela: dessa árvore nada é dado aproveitar: olha pois o que fazes para que não te assaltem o Pecado e a Morte, sócios entre si, cruéis.” No canto oitavo Adão se mostra inteiro, tateando nos caminhos do mundo que nasceu com ele e que ele desconhece. Eva já cuida das flores e das plantas (seus botões e gomos) como se de si cuidasse: fica a contemplar os lábios do esposo, de onde não só palavras colhias, mas também conjugais carícias – e ele por sua vez com os olhos nela seus desejos procura apascentar. E Rafael lhe diz que nascido ele foi do próprio sonho e ao acordar viu que era verdade. E assim ao lhe ser franqueado o Eden, ouve embevecido as divinas recomendações, incluindo aí a restrição do proveito das frutas da árvore do bem e do mal da infausta ciência – e embevecido no momento, ele não pôde atentar que ali se explicitava o nó da questão de toda de a vida. As ondas delgadas do ar as frutas e janelas da natureza, abertas para as gotas de água que o sol cristaliza para as sombras na amplidão da luz : uma frialdade solitária se concebe? Deus a percebê-la nele, reconsidera e desfaz a intenção de repetir no homem a própria solidão: se Sou sozinho por que o homem tem que ser, também, ímpar na sexualidade, diferindo dos outros seres? Assim Deus reconsidera e concede ao Homem a paridade dos outros seres, criando Eva a belíssima criatura dos tentáculos e das tentações. Foi assim que por bem e por mal a paridade foi admitida nas relações humanas: a união de dois formando um só coração, uma só alma, uma vida. Assim, pois, para sempre, por bem e por mal, uma solidão vive, ora subtraindo, ora somando-se à outra solidão.