domingo, maio 21, 2006

O SANGUE CENOGRÁFICO, DE LEILA MICCOLIS

Os poemas delas são irrevogáveis, contundentes, sentenciosos. Curtos e profundos, sintéticos e desdobráveis amplamente, como se depois da última linha o poema continuasse ferindo e perfumando a brancura da página, o vazio do ar e a lisura da parede. A partir de onde termina, o leitor joga seus dados, assinala seus quesitos, formula suas questões, vai e volta com novas idéias e imagens, sem camuflar a autoria dela, agora ampliada com os adendos dele, leitor. Os poemas são curtos e reprimidos, mas no livro que reúne mais de 30 anos de depuração e cristalização, eles aglutinam-se numa homogeneidade, numa espécie de sanha polvorosa, abalroando a linearidade da leitura, - e de repente os versos se revezam na pauta e a tonalidade desvirtua a normalidade enCANTAtória – e aí não tem mais jeito: o jeito é interromper a leitura, para evitar o colapso da euforia sentimental e cair na desritmia mental. Fecho o livro, dou umas voltas no quintal ou na rua, procuro esquecer a impactação, vou cuidar de outras coisas – e só dias depois é que retorno, sofregamente, às páginas do livro desdeixado na cabeceira da cama. Depois de dar um tempo na inquietante leitura, sentindo-me propício ao reinicio das inquietudes, reabro o livro e oh! e ah!, logo entro em nova enrascada, em nova infusão de arrepio e rubores. Aí sinto que não é uma poesia de simplesmente ler: é uma espécie de afago, uma dúvida de enigma, uma coisa para se carregar com jeito, equilibrando para manter a integridade; é algo que parece sumir de vista e que reaparece subitamente no ar mais desvairado e concomitante. Apalermado ou um tanto engasgado, comecei assinalando os pontos mais chamativos das páginas, como se fincasse ali sinais de minas, para esburacar depois. Balançava a cabeça, dizendo a mim mesmo que há muito que não topava com uma poesia tão desarticuladora de axiomas e paradoxos.... E parando um pouco para observar o rumo que a leitura tomava, notei que repetia muito a sinalização, querendo com isso dizer que a leitura se adiava em sucessivas e intermináveis vezes, para novas prospecções de preciosidades assim indicadas. Quero dizer, Leila, que sua poesia, além de possessiva, é inteiramente postergável e ao mesmo tempo imediatamente inadiável, contraditoriamente irresistível. Não é fácil suportar tanto peso na consciência, tanto embargo na mentalidade, tanto questionamento a ser revisto (pois o que é isto, na verdade, de a mulher ser sempre a parte fraca da humanidade, submetida ao homem, desde priscas eras, da infância à velhice, primeiro pelos pais e irmãos, depois pelos namorados e maridos, e finalmente pelos filhos e netos: quê maldição-esculhambação-negligência, quê arbitrariedade é essa?), tanta indicação para que o tema seja discutido e desenvolvido em confessionários de mea-culpa, em seminários universitários, em debates nas arenas políticas dos parlamentos e na chamada barra dos tribunais de alçada (ou que outro nome tenha). O jeito, novamente, é fechar o livro e deixá-lo assim em sossego, até que a possessão poética esfrie um pouco, para desvanecer um pouco a aflitiva nublação. É impossível, no entanto desvencilhar dos encargos e embaraços assumidos no decorrer da esfacelada leitura. Antes de cada vez, durante e depois, uma espécie de indistinta mensagem vinha subrepticiamente, de longe, aproximando-se nas intermitências marginais do desafogo, disparando a chusma de marteladas em pregos abstratos, as batidas e rajadas de vento nas portas e janelas, o arfar e o fluir nos subterfúgios mais impensados, como se o clima fosse de uma inusitada instauração de um tardio surrealismo. Os ardores fulminantes da cópula (seus arroubos agônicos de conluios e adjetivos superlativos, gritantemente superlativos), o tim-tim-por-tim-tim das copiosas aleivosias, as torneiras abertas das rusgas, as mãos carinhosas arrepiando as pulsões, a água fria nos pulsos dos desafetos a jorrar nos lares desabridos, o rosnar das discórdias subentendidas na calada das noites insones, o cio dos gatos nos telhados e das pessoas nas alcovas, os tímidos arrependimentos pós-altercações, os novos abraços e os novos beijos e os novos enlaces e novas penetrações, os reveses da contrapartida, os novos gozos celestiais das reabilitações morais e sexuais, tudo isso e mais aquilo em quilos disso e daquilo, tudo vindo como repasto e cantilena na surdina dos instintos, no subconsciente abalroado e redimido, os momentos felizes enfim reabertos na clareira do cerrado conjugal, surpreendendo a deus e a todo mundo na clara manhã drummondiana de chupar o gosto do dia e reconhecer que “o essencial é viver”. Leila Miccolis é toda a humanidade em suas vitais e letais manifestações. E tudo isso não é só isso. Os versos descolam-se das páginas, entram nos bolsos físicos e anímicos do leitor, impregnando as alternativas e as simulações de um resultado que é a poesia de dor e de prazer, que chora e que ri, escolhendo a poeta e o leitor as alternativas dos estágios, expondo e denunciando o que na vida e no mundo é a Anti-Poesia, que em outras palavras pode-se denominar de atraso de vida..