sexta-feira, maio 19, 2006

PICLES DIETÉTICOS

- Quem pode aceitar que as mesmíssima mãos que consertam um rádio ou um relógio pode tirar a vida de um semelhante? - Mergulhar na lembrança não é um risco? E se nela tiver muito visgo na fundura e não conseguirmos voltar à superfície? - Tão dessemelhante é um amor de outro amor!... - Uma alma que contagia a outra, aí sim, temos UM AMOR. - Sinto-me culpado ao saber que Deus não está feliz. - A gordura que escorre no fogo, a carne que sapeca no borralho, os sacrifícios pascais: quem legalizou tais abominações? - Só quando a morte começa a fechar o cerco é que advém a privação da sensualidade nas pessoas normais. - O transe crucial, no qual a sensualidade é afetada e até suprimida, é algo que beira o mortal precipício. - O mundo que temos é este mesmo que temos de melhorar continuamente, indefinidamente. - Uma pessoa só é uma pessoa se for o amor de outra pessoa. - O rosto de Greta Garbo é um pensamento de Deus? - Fugir da tristeza deitado numa cama é mais difícil do que fugir de um cão raivoso numa estrada larga e comprida. - O autor se exprime quando o leitor se vê na expressão. - Como Sartre, no olho da rua depois de ver um grande e belo filme, sinto-me um pouco mais que eu, quase outro. - Os olhos dela falavam de lugares logicamente inexistentes, familiares apenas a eles, olhos dela. - A prospecção de minha lavra: capenga aqui, afoita ali, quase esbarra no cristal inamovível.. - Os filmes de amor costumam exagerar na dose romântica. E o expectador, a enxugar tanta lágrima, ouve a própria voz dizendo em surdina: ora essa, que mentirada! - O cara que diz: quem faz sacanagem comigo, faz uma vez só, vive de mal com quase toda a população da cidade. - Quando São Pedro risca seus fósforos e arrasta as cadeiras no céu é sinal que os desabrigados da terra vão dançar. - Por que acrescentar complicações mortas às complexidades vivas?, pergunta Nietzsche. - O trivial às vezes prevalece: uma banal ária de aldeia pode resultar numa preciosa sonata de Mozart. - As combinações vegetais de musgos e ramos igualam ou ultrapassam as combinações elementares dos seres humanos. - Tudo que nos é dado de bom e de ruim, nos é dado como matéria-prima para produções que podem passar do efêmero ao eterno. - Um salto mentalmente longo e fisicamente perto. Assim é não pular antes de pular. Do subjetivo para o objetivo. - Regressar ao sono já dormido é um exercício intelectualmente válido. - Feio por feio, prefiro meu corpo, que pelo menos é meu. - O que há de comum entre o escritor e o relógio é que ambos são imprecisos e trabalham de graça. - No mundo do espetáculo, sempre que uma estrela cai, um astro cai em cima. - Segundo Ezra Pound, quem fez a primeira cadeira é um inventor; quem fez a segunda, um mestre. E quem sentou na terceira é um diluidor. - Programa a vida como se isto fosse possível. É um autor de telenovela. - Proust encontrou a eternidade procurando o tempo perdido. - O que chamam de lavagem cerebral não passa de outra sujeira cerebral. O cara escapa do espeto e cai na brasa. - Dirigia tão devagar na estrada de terra que se as rodas do carro fossem de madeira, brotariam. - O absurdo tem sua razão de ser. O senso comum não pode entender a estrutura do universo nem suportar o peso deslumbrante de uma tarde estival. - O que escondo dos outros, quanto mais escondo, mais visível fica para mim. - O desmancha-prazer tem dez manchas onde ninguém vê? - Para medir o peso de seus textos, o escritor pesava as folhas em branco e depois de escritas. - O uso do cachimbo faz a boca porca? - Quem morde na água quebra a cara? - Todo artista é contestador. Um bom exemplo: há mais de três séculos que Shakespeare vive a contestar os maus autores do mundo inteiro. - O contrário da humilhação é a dignidade – falou e disse André Malraux. - A arte é ambígua, o amor é ambíguo. Se não fossem ambíguos, o que seriam? Batatas digeridas ou não, amanhã jogadas no lixo? - Deus aparece na hora do dia amanhecer, depois desaparece, diz um personagem dostoievscano no romance “Os Possessos”. - “No turvo ocaso as luzentes asas”, diz Hopkins sobre o espírito santo vergado sobre o nosso mundo. - William James bem que tentou, através do óxido nitroso, embarcar no misticismo, mas acabou pegando o trem mais viável do pragmatismo. - Às vezes tenho a impressão que Freud é mais escritor do que cientista. Às vezes leio-o como se estivesse lendo Proust. -Ela me espezinha sem dó nem piedade porque me odeia, ou seja, porque me ama. - É nas horas mortas da noite que a vida desperta para o poeta que esmurra a porta fechada da própria noite. - Um pesquisador constatou a existência de 3.259 regos de esgoto a céu aberto na cidade, onde, em muitos deles, centenas de crianças nadam de braçadas. - Chutava tão mal a gol que não acertava nem a linha de fundo. - A mania de trocar todo ano de carro, de aparelhos eletrônicos, de roupas e de calçados, de mulher ou de homem, é fenômeno exclusivo da sociedade de consumo, que com mil negligências e artimanhas faz de tudo para que tudo isso seja mesmo trocável depois de certo tempo de uso. E quem paga o pato é a natureza cada vez mais dessacralizada, mais sugada e envenenada. - No Brasil da era Lula a desmoralização política é quase completa: os poderes executivo, legislativo e judiciário ficaram praticamente cooptados ao marasmo e estrepolias da corrupção e dos desmandos. Restaram o quarto poder, ou seja, o da Imprensa (palmas para a revista VEJA e para o comentarista Alexandre Garcia, da TV Globo) e o quinto, do Povo. Mas o Crime Organizado, no sexto lugar, quer galgar a liderança e proclamar o advento do apocalipse de rabo grosso. - Depois do reinado estéril e sufocante da tecnocracia nas décadas da ditadura, o retorno ao culto dos políticos, que parecia salutar, está agora descambando e mostrando os dentes podres e vorazes. - Que o sexo é sobretudo uma fonte de prazer, até o estudo da biologia prova: os seres que mais procriam são os assexuados. - Nunca mais levou desaforo pra casa, depois que descobriu o caminho do bar. - Possuía o ar tétrico de um pai que espancava os filhos e que jamais tinha comido cadeia por isso. - Quando o amor entra pela porta, o amante sai pela janela? - Tantas vezes o cântaro vai à fonte, que um dia cantará. - Beaumarchais disse que o que é muito tolo para ser dito, pode ser cantado. Profetizava o surto da maior parte da atual música popular brasileira? - Os tempos mudam. O judeu errante fincou os pés no solo e mandou o palestino sedentário errar pelo mundo. - O homem norte-americano polui cinco vezes mais que o indiano. Logo, povo desenvolvido não é, consequentemente, povo limpo. - É tão liberal que até admite a sobrevivência dos corruptos, temendo ficar muito solitário neste velho mundo sem porteiras. - Na cidade os pernilongos são tão descomunais que quando pousam em nossas orelhas, elas até abanam. - O rio da roça viajou léguas para prosear com o rio da cidade, mas quando chegou perto não aguentou o fedor. - Nunca um não me doeu. Quem não me ama, não me merece. - Nada a polemizar com a turma arrogante dos que pensam que o nada, na boca deles, é o tudo. Nada de perder tempo com essa cambada. - O ser humano é capaz de esquecer a ofensa, o desacato, a injustiça, mas jamais esquecerá uma humilhação sofrida. - Drama que pode virar tragédia é o do arrivista que não logra seus intentos. - Muitas vezes quem pensa que está indo para a frente, está é retrocedendo, passando o que já passou – e agora com as pernas cansadas. - Certos filmes e livros deviam ser vendidos em farmácias, como remédios para muitos males. “Relíquia Macabra”, de John Houston, já me curou de uma gripe enfadonha e persistente. E “Dom Casmurro”, romance de nosso querido Machado de Assis: para quantos males pode ser receitado? - O mundo globalizado está desafinando? Azar de nossos ouvidos, sujeitos à zoeira da baianização irremediável e da falsificação da musica caipira, transformada em caipora esguelhada. - Os versos das canções populares têm outra poesia, não a dos poemas de palavras que encolhem e desdobram com a flexibilidade de plantas sob o sol e chuva da roça. São mais cortantes e atenuantes, mais explícitos na direção colimada. - A praga das faculdades de fins de semanas em todo o país atenta contra as boas normas do prazer e da cultura. - O exibicionista mata a cobra e mostra o pau. - Os sonhos da Bela Adormecida no Bosque com o Monstro da Lagoa Negra faziam a Branca de Neve corar. - A fome era tanta que enquanto as aranhas teciam as redes em sua garganta, as suas tripas maiores comiam as menores. - Virava e mexia e sapecava seus trocadilhos infames. Morreu com um palavrão atravessado na garganta. - A casa é o seu interior, é a moldura do retrato, o vazio dela tem a forma e o conteúdo de cada corpo que nela mora. - O ir e o vir ocupam o mesmo caminho. Só o carangueijo anda de ré, mas ele também vai e volta. Ou está sempre voltando, indo? - O ser vivo está frequentemente tocado pela morte – está se aproximando cada vez mais dela. Exprimir essa angustia existencial através dos ritos dramáticos: quando vou conseguir? - Quem não tem medo de morrer, tem coragem de matar? - O belo tem um certo parentesco com o horrível quando, também, causa um certo medo. O medo de alguma verdade muito feia? - É muito difícil levantar as causas sem cair nas conseqüências. - E tenho aquele distante parente lá da Barra, que casou, homisiou, viveu consecutivamente com quatorze mulheres diferentes. O cara só podia ser doido de jogar pedras: não tinha amor-próprio nem subconsciente, nem nada dentro da cachola; vivia da boca pra fora. - Farias Brito acreditava que a prosa venceu o verso quando a imprensa foi inventada, facilitando a escrita torrencial antes dificultada pelo esforço manuscrito. Da síntese poética do verso passamos à torrencialidade da prosa. - O que distingue o cidadão de qualquer comedor de feijão é que o primeiro não quer levar vantagem em tudo e se recusa a fazer o mal, mesmo quando não pode fazer o bem. E então, você é um cidadão ou um mero comedor de feijão? - No trágico episódio da refrega do crime organizado no Estado de São Paulo versus autoridades constituídas, levando o pânico, a morte, a insegurança ao seio da população, dois personagens se destacaram nos bastidores: de um lado o jornalista Alexandre Garcia acusando os culpados e do outro o ministro Tarso Genro defendendo os culpados. - Um favor ou benefício que você presta a outrem, se repetido de tal maneira que vira uma obrigação, deixa de ser um favor ou um benefício, para ser uma espécie de desaforo. - A diferença ente um campo de nudismo e uma praia (ou piscina) no verão, é que nesta ainda resta uma nesguinha (uma tanguinha) de sensualidade. - Quem se devota à literatura enfrenta tanta dificuldade, tanta malquerência, que acaba se arrependendo. Só que tardiamente, quando reconhece que está perdidamente apaixonado por ela. - Antigamente se Maomé não ia à montanha, a montanha ia à Maomé. Hoje, com tanta caixinha de fósforos ao alcance das mãos dos malfeitores, toda montanha, na época da seca, vira uma bola de fogo. - A mulher à sombra se compara (diz a lírica chinesa). Segue-se a sombra, ela foge; foge-se da sombra, ela nos segue. - O mundo pode viver sem a literatura?, pergunta Sartre. Muito mais ele pode viver sem o homem – é a sua resposta. - O desejo é melhor do que o orgasmo, diz a psicóloga Lídia Aranty – pois aquele perdura no tempo e na intensidade, enquanto que este é limitado no tempo e na intensidade. A diferença entre os dois (ela acrescenta) está entre o não vivido (onde cabe tudo) e o vivido (onde cabe do melhor e do pior, mas só cabe o que cabe). - Fedaputa, desgramado, ordinário, vagabundo, excomungado: alguns xingamentos usados na roça, tempos atrás. Não de caso pensado nem de pré-concebida maldade, mas por indignação, raiva instantânea. - Tomé de Souza chegou em Salvador em 1549, trazendo o Governo- Geral, o Ouvidor-Geral, o Provedor-Geral. A cidade e a colônia passaram a ter tudo menos povo, uma vez que os índios não eram vistos como gente. Quase quinhentos anos depois temos o povo, mas não a organização do povo. - O alto daquela serra espera por mim anos e anos. Quando irei lá, para ver de perto a camada de verdes palavras falando sobre a pedra negra e inconsútil, esférica e acolhedora? Quando irei lá descansar minha cabeça sobre a linha dos musgos sombrios? - Por que uma boa história arranca-me lágrimas e não sorrisos? Chorar diante da tristeza é normal, mas sentir a prevalência das lágrimas mesmo diante de uma bela e positiva emoção..., sei não. - A resignação é um pequeno e furtivo suicídio, como queria Balzac? - De uma coisa Conan Doyle tinha certeza: em toda história de crime o Mau Gosto é o personagem principal. - É claro que não tenho nenhum prazer em presenciar, ouvir e contar sobre as causas, os atos e os efeitos da violência institucionalizada em muitas partes do mundo. Ao contrário! É sempre com um lenço enxugando os olhos que vejo, ouço e conto (por dever de ofício? profilaxia psíquica?) o que assim tanto fere a vida das espécies de nosso tempo. - A pessoa quando é má e ruim , só tem boca pra xingar, não é mesmo? Nesse caso está desprovida de sensualidade e traz e leva em si apenas a reles sexualidade. - Fantasiar a realização dos desejos é fácil – e não causa danos a ninguém. - É raríssimo encontrar um pobre que seja escritor, músico ou cineasta. Por que? Porque a arte custa dinheiro e dinheiro custa ganhar. - O inquisidor dos pássaros?: é o mesmo detonador dos fluidos maléficos, o mesmo causador das desinterias espaciais, o fazedor de desertos, o apropriador das economias, o zanga-sabão do dia-a-dia familiar e comunitário. - É preciso olhar o lado (ia escrevendo o lodo) horrendo da mente humana, de vez em quando? - Nos olhos o olhar que nunca parecia findar: radiante como o de um céu ou de um abismo (de rosas). - Às vezes a luz ofusca, a escuridão aguça. - Uma nuvem de incenso alternadamente cobria e descobria seu corpo escorregadio e fremente. - Uma e todas, todas e uma: é sempre a mesma mulher que me procura, que eu procuro. - Realidade, magia, milagre, é só abrir os olhos e encontrar. Mas como encontrar essas qualidades no ser humano sem os piques e os repiques da aversão e dos atritos? - Ao morrer outra pessoa sairá de mim e eu, invisível aos outros e a mim, ficarei olhando, sem nada sentir. - Sou a mesma pessoa na claridade e na escuridão? - A vida rural é toda feita de religião, magia, mistério, dor, purgação, milagre, morte e ressurreição. - Um grande esforço devia ser feito para conservar a inocência espontânea das pessoas que ainda não foram atacadas e feridas. Elas que vivem sem queixas e mágoas que ainda acreditam na sincera bondade das outras pessoas. - A vítima fragilizada pensava, enquanto apanhava do algoz: você é parrudo e cruel, mas ainda vai encontrar alguém mais parrudo e cruel. - Passar do implícito para o explícito não é perigoso? O segundo momento não pode banalizar o primeiro momento? - As pessoas da trindade: ego, id, superego: a mulher o homem o ambos a narrativa a descrição o discurso as três frases consecutivas, as três palavras os três pensamentos no ar. - A imaginação: se lhe dar asas, ela não pára de voar. - Uma, além de bonita, é bela. Outra, apesar de feia, é bela. - Perdido de amor, ele caminhava sobre as pedras, sem pisá-las. Carregava arroubas de espigas num ombro e no outro levava papagaios e capivaras comendo as espigas. E cantava, enquanto andava. Cantava sem parar. - As pessoas podem ser humildes, mas não humilhadas. - Lá do morro o vento mandava algumas de suas brisas para a baixada, mandava suas melhores lembranças para acariciarem nossos cabelos e molharem nossos sorrisos. - Existia um sujeito na minha terra, malucado e subentendido, que gostava de mencionar os maus presságios atmosféricos e de rabiscar na areia com as suas garatujas os croquis cabalísticos, figuras estranhas, coisas iniciáticas, signos de salomão, enigmas folclóricos, logo ele, coitado, tido e havido como um capiau da roça. - Ái de nós, como pesa a certeza que mais temos: a de que um dia ficaremos perdidos em nós mesmos numa dessas noites profundas, em pleno dia. E então para sempre ficaremos arquivados nalgum escurinho que ninguém mais freqüenta, tipo Conservadoria Geral do José Saramago? - Afinal por que uma pessoa se mata? Ela não se mata, nunca: antes é matado. - É preciso acender com o fogo de nosso coração o coração das outras pessoas, como queria Gogol. É assim o contágio da vida.