AMIZADE LITERÁRIA
1 – Ausência de Ary Xavier. Onde andará Ary Xavier, autor da quarta plaqueta de poesia das edições Complemento (as anteriores foram de Heitor Martins, Elói Silveira Reis, e Pierre Santos), intitulada “Fábrica de Solidão”? Ele era amigo e vizinho no bairro de Santa Efigênia (BH) de Joaquim Soares Ramos (a mais drummondiana das pessoas que conheci), que era meu amigo e colega em Salto Grande, onde trabalhávamos na construção da primeira grande usina hidrelétrica da CEMIG. Graças a essa duplicidade amistosa, travamos o mútuo conhecimento, que tanto prezo até os dias de hoje. O Ary transpirava poesia dia e noite, transbordava de imagens e conceitos versificados de acordo com as novas inspirações e as novas habilidades de um vanguardismo que floresceu e frutificou de Minas para o Brasil. Mas o que afinal foi feito dele? Namorava uma moça chamada Aparecida – e foi ela que desapareceu com ele? Fico sem saber como de repente uma pessoa desiste de uma vocação e de uma concepção de vida tão arraigadas. Eu também fui tentado de mil maneiras, por bem e por mal, cheguei a fazer algumas pausas, mas desistir da literatura, jamais. Ele era um expoente de todo aquele múltiplo, polivalente movimento da chamada Geração Complemento, que marcou época na história da moderna literatura de Minas e que revelou autores como Heitor Martins, Pierre Santos, Silviano Santiago, Affonso Romano de Sant’Ana, Vicente de Abreu, Terezinha Alves Pereira e tantos outros, todos até hoje em fecunda e brilhante atividade. Lembro-me que a Complemento ia publicar meu primeiro livro, inédito até hoje e para sempre, chamado “Crepúsculo Verde” – mas a pequena editora (que vivia à custa de subscrições) faliu duas plaquetas antes de publicar a minha. E o Ary sumiu de vista: fiquei sabendo que casou e mudou, e nunca mais publicou uma linha sequer nos tablóides literários, nunca mais publicou um livro. Uma pena. Por que, afinal de contas? Por desencanto da poesia? Mas é por gosto e encanto da poesia que me lembro dele e transcrevo aqui a segunda parte de seu poema “rosa em sigilo”: “é que ela tem suas próprias carícias e convive num país de afetos quando dezembro chega com o prestígio do sol saudando na intimidade a pele que a envolve sua voz atingiria sutilezas de orvalho seus pés inventariam uma ilha de luz e peripécias”. Não é bonito e consistente? Fico pensando se ele não tivesse desistido..., que rumos novos de novas estrelas não teria descortinado... e os jogos de palavras e os atavios da comunicação e os achados de novos valores....Ah é claro que ele deve ter tido lá suas razões..., mas deixou um lugar na literatura mineira que não se preencheu até hoje, o lugar que era dele e de mais ninguém.
2 – A Presença de Leonor Vieira-Motta.
Vive em Volta Redonda (RJ) e este (VERO BRILHANTE) é seu livro de estréia, para o qual tive a honra e o prazer de escrever uma das orelhas, que transcrevo aqui:
“O jogo das palavras nas mãos de Leonor Vieira-Motta é um jogo de vida. Da simples arrumação dos vocábulos, ela transige para a fazeção de coisas e seres, pensares e dizeres dos momentos e lugares, dentro e fora deles e de nós. E a poesia não é, em dois tempos, causa e conseqüência? Explícita e implícita, nas beiradas e no núcleo e nas imediações e nas longidões. O que lemos é algo maduro e doce e consistente, plantado, colhido e beneficiado dentro dos apurados requisitos de pureza artesanal em todos os momentos da gestação, da concepção e da entrega à fruição que não se esgota, que é o livro válido em si mesmo, repleto de arrebatamentos e apreensões.
A fluência airosa e alada desemboca na primeira curva da disciplinada elegância e todo o azáfama da cachoeira redunda no murmurar de um remanso, doce e plausível. Assim vai o poema dividindo-se nas escaladas, multiplicando-se nas barragens laterais. Ela (a poeta, a poesia) a falar de si e dos outros, o eu dela no mundo nosso de cada dia na telepatia dos fazeres e dizeres, pensares e sentires. O leitor se felicita, fica muito à vontade quando sente a co-autoria dos poemas que transitam na plural ressonância das páginas (um percurso mais que um livro?) de lírica comunicabilidade. Como o músico que trauteia nos timbres e auréolas, ela apalpa, espalma, afaga e derrama carinhos e receios em seus tons e devaneios e logo está em todas as afinadas vozes da orquestra. Aí chegamos na iluminação, perdidos e achados na exemplaridade inteiriça e consecutiva dos poemas – e cada página espelhando o fulgor da anterior em todo o deslumbrado caminho da leitura.
Eis um de seus poemas, intitulado PAPÉIS:
“A folha de papel
acena pra mim.
É lenço branco.
Pede trégua.
Enxuga lágrima.
Tremula no vácuo
entre a partida
e a chegada.
Retangular
lembra a piscina
com independência
de temperatura e clima
onde mergulha
e nada livre
sereia, golfinho –
Cristina.
3 – A Onipresença de Drummond.
Uma vez Drummond, sempre Drummond. Ele parecia viver no fundo das coisas, de onde via as superfícies do lado de cima e do lado de baixo. Assim ele continuava em Minas (onde talvez estivesse morto, ou seja, estivesse a viver de outra forma), estando no Rio (onde desenvolvia a ilusão do migrante, julgando que tinha ido, pensando que tinha ficado). Vivia em muitas dimensões: o coração numeroso a recalcar os climas do nível das nuvens e do nível dos mares, o cérebro dinâmico a receber e expedir as mensagens dos sentidos continuamente despertos, em palavras carregadas de energia.
As várias fisionomias do rosto do poeta, como diz Silviano Santiago no prefácio de FAREWELL, configuram a personalidade poética de um companheiro do tempo, que não envelhece porque já era homem feito e maduro desde os tenros anos da infância, confirmando uma opinião de Alceu Amoroso Lima, segundo a qual o mineiro é mais jovem em idade avançada do que nos primórdios da vida. Ambivalentes e múltiplas (como diz o Salviano), as fisionomias conservaram (perenizaram) o rosto de uma personalidade poética ao longo do tempo, sem envelhecer, ou seja, sem enfraquecer o tom de voz, o alcance do olhar, a verve da expressão, e sem descurar a sensualidade da vida cotidiana, onde e como estivesse.
O arraigado amor à família, que Drummond dissemina de forma carinhosa e profunda em tantos poemas, é a sublimação de sua mineiridade: o sentimento de solidão dos vastos espaços montanheses, que sobrepõe outro sentimento ainda mais agudo: o de que a família resume a humanidade.
O raciocínio ciclópico afinado à fluência das articulações na confluência vocabular: nele o poeta é o jogador que distribui as palavras no papel como as cartas na mesa e a bola de futebol no campo.
1 Comments:
Prezado senhor, sou Carlos José, filho mais velho de Ary Xavier, só hoje tive conhecimento de suas palavras sobre meu pai. Será um prazer conhecer tão ilustre pessoa, meu pai mora aqui perto, num sítio coberto de flores e lindas palavras.
meu contato: cajuzex@terra.com.br
Abraço,
Carlos
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