A VISÃO DO PARAÍSO (*)
Corria, pelos mares e florestas, o ano de 1499. No Velho Mundo a natureza, já cansada e chateada com o homem, regateava suas dádivas escasseadas, avaramente. No Novo Mundo, ela se entregava de braços abertos aos aborígenes, sem que nenhum deles fosse arador, ceifador ou moleiro. Meio século depois o Padre Rui Pereira testemunhava que o Paraíso ainda estava aqui neste mundo sem o mal, com a Lógica, a Dialética e a retórica embutidas na Magia, na Astrologia e na Alquimia, entidades do conhecimento em repouso, que não precisava explicar as flores em tudo e até nas pessoas, para assim não desencantar as coisas e os seres. Outro viajante, Navarrete, também dá seu testemunho: “Não há melhor gente que a daqui: ela ama o próximo como a si mesma, tem na ponta da língua a palavra mais doce do mundo, mansa e risonha. Homens e mulheres andam nus, envoltos na pureza que nada tem a esconder”. A presunção que vem de velhas concepções colombinas, que a cartografia contemporânea não contradiz, de uma ligação por terra entre a Ásia e o Novo Mundo, confirma a idéia que o Apóstolo São Tomé tinha vindo pregar na costa do Brasil, depois de passar nas Índias Orientais. Duarte Barbosa em seu “Livro” de 1516 fala que os naturais da terra “quiseram mostrar as pegadas de São Tomé no interior do País”, indicando também as cruzes que ele fincou, acrescentando que as pessoas chamavam-lhe Deus Pequeno, porque havia outro Deus Maior. E muitos pais chamam, até hoje, seus filhos de Tomé, ele diz. E a Arca de Noé, do Dilúvio Universal? Ah, pois, o que consta é que foi construída na vertente ocidental da Cordilheira dos Andes, em forma de nave (de 28.125 toneladas), e saiu dali guiada pela mão de Deus, foi até à Ásia e, depois de anunciar a nova espécie humana, regressou ao Novo Mundo, que então era uma reserva ambiental verdadeiramente edênica. E o monte Atlas, que conhece as profundezas sombrias do mar, que segundo Homero, emerge diretamente das águas oceânicas, confirma a hipótese aplaudida por Humboldt de que seja, de fato, o nosso conhecido Pico de Tenerife. Numa das Ilhas Afortunadas, citadas na odisséia homérica, em vez de neve, furacão e trovoadas, sente-se até hoje a delicada brisa, as chuvas suaves e o clima temperado, os ares bonançosos e salubérrimos, tantas amenidades que mesmo entre os nativos havia a convicção de que ali estavam os verdadeiros campos elíseos cantados pelo vate helênico. A terra era de todos, assim como o sol e água, e as expressões “meu” e “teu”, germes de todos os males sociais, não existiam, não eram usadas por ninguém naquele tempo (por volta de 1560), em que nossa terra brasileira já era conhecida por Obrasil (topônimo que significaria “ilha afortunada”) e que aparece em vários mapas e nas cartas portuguesas de Lázaro Luís, de 1561. Uma apóstrofe de Ronsard roga para que não se “macule com o engenho e a arte dos civilizados a felicidade da gente sem malícia que habita as margens de Guanabara”, porque só mesmo talvez um lugar remoto “entre gentes tão nuas de roupas quanto de vícios se acharia alguma imagem, atenuada embora, daquilo que foi o Paraíso”. A própria civilização que exaure a natureza, não cansa de louvar suas virtudes, seja no culto aos metais através dos quais resplandecia a própria luz da fé, seja na mitologia greco-romana que endeusava a águia de Júpiter, o pavão de Juno, o cisne de Vênus, a andorinha de Filomela. O jesuíta Manoel da Nóbrega escreveu uma carta em 1549, com todo amor e carinho: a terra brasileira “é muito sã e de bons ares, de tal maneira que, com ser a gente muita e ter muito trabalho, e haver mudado os mantimentos com que se criaram, adoecem muito poucos, e esses que adoecem logo saram. É terra muito fresca, de inverno temperado, e o calor do verão não se sente muito. Tem muitas frutas e diversas maneiras, e muito boas, e que tem pouca inveja às de Portugal. Os montes parecem formosos jardins e hortas, e certamente eu nunca vi tapeçaria de Flandes tão formosa, nos quais andam animais de muitas diversas maneiras, dos quais Plínio nem escreveu nem soube. Tem muitas ervas de diverso olor e muito diferentes das de Espanha, e certamente bem resplandece a grandeza, formosura e saber do Criador em tantas, tão diversas e formosas criaturas”. Tudo mudou, porém, quando os colonizadores perceberam e divulgaram que com o ouro da Nova Terra tudo se podia fazer, até mesmo mandar almas ao céu. Foi assim então que a terra daqui também passou a dar cardos e abrolhos, gemidos e padecimentos.E pra terminar nossa resenha do livro de Sérgio Buarque de Holanda,vai aqui a indagação, baseada nas idéias e concepções de Platão, Aristóteles e Santo Agostinho: “O que significa a depravação do mundo senão a privação da VIRTUDE que nele infundira o Senhor em sua Glória Primeira e Virginal”? No começo do tempo - se é que o tempo teve começo – toda a terra era como o Brasil de 1500: ninguém sabia dos ferros e fogos da ganância nem dos pesos e medidas da pecúnia era tudo sem culpabilidade, sem queixume era tudo na espontaneidade dos fartos e variados frutos... Isso da terra gemer e padecer no passar a dar cardos e abrolhos veio depois veio quando um aborto da natureza caiu no solo fértil da condescendências germinou e multiplicou e virou praga e hoje é o que vemos no desprazer à revelia das leis naturais: o desmatamento o descaramento a corrupção o lúgubre reinado de macunaíma e seus manos e manas. Agora ninguém sabe mais o que é a natureza ela que era o livro das mensagens vitais: é só olhar e ver os pássaros angelicais ainda entoando ainda expandindo em salmos e hinos as glórias de Deus ainda debulhando em cânticos as horas canônicas em nome dos profetas santos e santas e das borboletas no cortejo das espécies as guaraciabas em raios solares as lagartas de cores hepáticas o louva-a-deus gentio e cristão o inseto que vira planta a deitar raízes no maravilhamento metamorfósico a erva casta que ao simples toque murcha e só a abelha e Deus sabem o segredo da abelha e de Deus ela que faz do amargo o doce assim como o maracujá faz da flor a paixão dos ungidos pois que o que é o olho no mundo corpóreo diz Pico é a mente no campo espiritual: os espinhos e as garras das agruras são os prenúncios da civilização? pois que o demônio, que é espírito, vê nossa alma e nós, que somos o corpo dela, não a vemos. O demônio a quer, ora pois! e nós nem tanto, ora pois! E nós nem mesmo sem saber o que fazer desta constatação.
(*) Texto escrito depois de ler o livro VISÃO DO PARAÍSO, de Sérgio Buarque de Holanda – Coleção Folha de São Paulo, SP 2000.
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