sexta-feira, setembro 22, 2006

DOSTOIEVSKI, O OLHAR MAGOADO, O CORAÇÃO ABATIDO

A tatear nas almas e nos destinos, como diria Agrippino Grieco, ele socorria os semi-mortos das periferias físicas e mentais da Santa Rússia, como um sopro atordoado dos próprios revezes. E atolado no miolo do azáfama , ele vivia, vivia ao escrever. E assim era o personagem das próprias obras, enquanto seu leitor era também levado a uma vida idêntica ao se enredar ao ler suas obras. Assim em dias seguidos, meses e anos, eu lia suas obras completas, sem assinalar este ou aquele trecho, uma vez que todo o livro era o sinal, a ferida de minha própria contemporização, de minha própria destinação. Na verdade diria o Otto Maria Carpeaux, quem suportaria “o hálito fogoso do cavalo apocalíptico”, ao ser por ele pisoteado ou estando nele montado, na súbita e constante iminência de cair? Ah!, só ele mesmo para discernir um amor em segundo plano, um segundo amor inesquecível, nas noites brancas do jardim solitário de Nastenka, a moça que guarda no bolso a maçã de um pomar alheio.... Só mesmo ele a andar sozinho, sentindo que não é de ninguém e que é, ao mesmo tempo, “de toda Petersburgo”. Dostoievski poderia ter se tornado um chorão depois da chegada da velhice com suas cãs e rugas? Não, ele não tinha tempo para isso, não tinha. Mas nós, seus leitores, sim: é abrir e fechar cada página para que mais uma lágrima desça, quente e luminosa, dos olhos ao coração. O que fazer agora se o próprio caminho fugiu de nossa frente? Ele perguntava, com Puchkin, ao começar a contar a história dos demônios humanos. Sempre reconhece (como reconheceu seu leitor-crítico Roberto Alvim Corrêa) que a alma coletiva de um povo tem muito de uma alma particular. “Os Demônios” (ou “Os Possessos”) é um livro de idéias, no qual se prevê a militância dos deserdados exigindo a herança dos abastados, herança que uma vez obtida pelos guerrilheiros vira logo num ferrão nas mãos dos próprios guerrilheiros – e aí novo despotismo se apronta e nova crueldade carcome e nova estaca zero é fincada nos umbrais da desesperada, carcomida esperança.... E ele, genial e “epiléptico, histérico, anormal, carregado de taras e de vícios”, como quer Rafael Canzinos Assens, talvez volte a ser o que talvez nunca foi: um professor do cristianismo? Seria “Crime e Castigo”, um romance de amor? O ser desamado é desvalido, ele diz. E foi o amor de Sonia, a iluminação do afeto de Sonia, como lá diz o Brito Broca, que fez Raskólnikov arrepender-se do crime que cometeu, resignando-se ao castigo e só assim poder esperar a reintegração à vida social dos semelhantes. Sonia, mocinha enfermiça e sofredora, que se derretia em lágrimas ao se prostituir para fazer caridade, ou seja, vender o próprio corpo para alimentar os mendigos. “Ela é feia”, ele diz. “Não sei porque me prendi a ela. Mas se ela além de feia fosse capenga ou corcunda, meu amor por ela seria ainda maior”, assim ele dizia à mãe e à irmã, estupefatas na estranheza de reencontrá-lo assim obviamente alienado. Ele, Raskólnilov, agora não é nem de longe o mesmo. Errando uma vez por querer, acaba errando mais duas vezes sem querer – e agora se comprimia no medo das outras pessoas e até de si mesmo, sem saber se todas as pessoas estavam doidas ou se o doido seria ele mesmo, socado naquele mundo possuido de toda aquela miserabilidade. E por que cargas d’águas, ele pensava, pessoas tão puras e boas como a mãe e a irmã vieram parar aqui no meio de tanta impureza e de tanta maldade? E ele, traído por si mesmo? Quem, dentro dele, incutiu-lhe a maluca idéia do latrocínio? Será que mesmo na lucidez ele não “regulava”, tomado por assim dizer, de uma espécie de racional demência? Agora estava mais perdido do que cego em tiroteio: se saia um pouco de si para viver um pouco fora de si, só encontrava feições iracundas a acusá-lo; se ficava em si, ensimesmado a mentalizar, só conseguia recolher medonhas imagens inquisitivas, cerceadoras, punitivas. Se abstraia um pouco, a sonhar fora de si, logo via o dedo em riste apontando-o na rua, ou o dente afiado da fera e toda a hediondez na superfície das águas correntes ou a monstruosidade no fundo dos olhares dos seres e das coisas ou as palavras pesadas das aves e dos pássaros, tudo ciclopicamente a bater, a sufocar, a engasgar, a martirizar sua impenitente situação do flagelado que não tem para onde ir. Precipitação e impotência, crime e castigo. Quem deve, tem que pagar!