quinta-feira, agosto 24, 2006

MANIA DE ESCREVER

Lá está o pardal catando os farelinhos de pão na mesa da cozinha, sem se importar com a nossa repentina presença? Cadê a máquina fotográfica para flagrar a beleza momentânea? E os três gatinhos brincando com a mãezinha debaixo da folhagem enxuta do quintal? Se empunho a máquina, eles fogem correndo e saltando como criançolas cheias de graças: como são angelicais uns com os outros e com a mãe, sob os nossos olhos.... E a cena patética da égua na beira da rodovia, longamente sofrendo e meditando a morte de seu poldrinho violentamente atropelado na pista de rolamento da estrada assassina...?! Cadê, na hora, a máquina fotográfica? Você tem apenas a caneta e a folha de papel? Nem isso, no momento? Mas tem a memória nos olhos e na mente e no coração? O retrovisor do carro não capta mais as móveis paisagens depois de tantas curvas e rampas? Estão, assim, olvidadas para sempre? Não, nem ver. Você tem os olhos da lembrança, a folha de papel, o lápis, a máquina datilográfica, o computador. Mãos à obra, pois. Hemingway, respondendo à repórter e aprendiz de literatura sobre a técnica que usava para escrever seus livros, disse, mais ou menos assim: aponto dúzias de lápis, separo centenas de folhas de papel em branco e depois, sabendo que escrever é reescrever, passo tudo a limpo quando vou datilografar e novamente corrijo, corto e acrescento, quando vou revisar as provas da publicação. É bom lembrar que no tempo dele não existiam a digitação nem o disquete. Mas a moça queria saber mais e não apenas a parte manual do trabalho. E ele acrescentou: se quiser ser uma escritora, você tem que ler os bons autores, antes de começar a escrever. Não para imitá-los e produzir obras mais ou menos idênticas. Você tem que lê-los à exaustão para aprender a superá-los, para escrever melhor que eles. E assim é. Só assim vale a pena entrar na literatura: esmiuçando o gigantesco desafio das obras já existentes. E nesta linha de raciocínio sobre a chamada arte de escrever, lembro-me do que Faulkner respondeu a um repórter sobre o que podia derrubar o escritor no meio social pragmático e hostil. “Só a morte”, ele respondeu. “Só a morte pode derrubar o verdadeiro escritor. Falo do verdadeiro escritor e não de quem vende a alma por uma casa com piscina”. Escrever é um exercício estafante, penoso, angustiado e ao mesmo tempo maravilhoso. É simultaneamente pactuar e exorcizar, chamar as tentações das entranhas mais ignotas, dissecá-las, transcendê-las – e depois mergulhar sem afogar em suas águas profundas, às vezes lodosas e sombrias, às vezes airosas e fosforescentes. Mantenho nas retinas por enquanto poupadas um personagem infelizmente fictício que construiu em seus três alqueires de chácara em Marilândia uma vivenda com tal critério que ela passou a representar pra ele uma resposta às perguntas que Deus lhe fazia. Ele tinha desenhado a gleba mentalmente e foi roçando, arando, plantando, capinando, podando, dispondo as pedras, as relvas, as árvores, as águas correntes, a fontinha na grota das imbaúbas, os ninhos dos passarinhos, os nichos de bichos, os valos e cercas de arame e de bambus, foi dispondo tudo isso em linhas de curvas geométricamente corretas ao longo e ao largo do terreno como se escrevesse uma carta de amor e carinho para ser lida de longe, do alto (pelos anjos lá no empíreo?). As palavras em formas de vegetais, minerais e animais; em conteúdo de oxigênio, biodiversidade, clima: coisas e seres concretos e abstratos em forma de palavras manuscritas para serem lidas por quem as contemplasse de um patamar mais alto, tudo para exprimir o quanto ele, agricultor da vivacidade, prezava os dons e os bens, os seres e os símbolos, os sentidos traduzidos e revitalizados em perenes e renováveis formas e conteúdos dos milagres da natureza. Sim, penso e pergunto: escrever é (não assim como faço: tão mal) pesquisar, testemunhar e projetar? Seguindo a mesma linha de raciocínio, lembro-me do que disse Pierre Menard: “pensar, analisar e inventar não são atos anômalos, mas sim a normal respiração da inteligência”.Sei não, mas às vezes penso que estou perdendo a paciência ao ler os escritores franceses da era pós-Sartre, os lançadores do chamado nuveau-roman. Pois duas ou três páginas de Lacan, Derrida, Foucault, Barthes, Sollers e já estou bocejando, quase engolindo a mim mesmo no enfado mais crucial. O que ficou neles do inventário de Flaubert, Zola, Stendhal, Baudelaire, Proust, Yourcenar, Gide e Claudel? Viraram a casaca, como se diz, no afã de contradizer os cânones? Sei não, mas eles aprontam uma tal leréia de enrolações e negligências e embarafrustações e obscuridades balofas.... Sei não, Deus que me perdoe, mas não está em mim agüentar tal maçada, tanta mastigação de chicletes, tanta empolação na drenagem do terreno insistentemente esterelizado por esses precursores de um novo tipo de hermetismo, o da linguagem corrosiva. Deus que me perdoe o possível exagero de minha alergia exposta linhas acima.É que tentando ler os autores nebulosos, não me contenho e fico morrendo de saudades dos outros mais legíveis, tão numerosos mesmo entre nós, e assim pensando não posso deixar de citar o nosso Emilio Moura, da aprazível Dores do Indaiá, transcrevendo aqui o seu antológico poema sobre a NOIVA: “Caminhas para mim como uma colegial em férias. Teu sorriso é tão puro que te ilumina toda. És mito, mas toco-te; realidade, te elevo e te transformo em sonho. Por que não me revelas de onde surgiste e de que elementos te formaste? Teus cabelos são nuvens? Tua voz é de orvalho? Quantas vezes me torturei inutilmente porque ainda estava irrevelada - fonte oculta na mata, ária adormecida, estrelas entre as nuvens... Dormias, Noiva? Meu apelo te acorda e eis que sorris, de súbito. E é como se eu nascesse agora.

2 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Lázaro:sorrio ao ler-te, pois me encontro inteira nesse dizer literário quel um chale de luar.Lembro a gente simples, da roça, que classificaalimentos em fracos e "de sustança".Também eu busco autores que digam, saibam dizer,e com sustança.Assim , teu texto oferecido qual mesa posta de variados acepipes ,ao ar livre, em baix de uma árvores, com crianças na algazarra e no movinetos, os gatos a brincar por perto, os pardais afoitos, atrevidos, a bicar de um tudo...Eu,que desde os Anos Sessenta, sou de guardar tuas palavras na Memória, te reencontro agora;a mesma alma- fênix que aromatizada renova-se de si mesma.As tuas palavras, inovadas.No alto do totem de tua Poesia, a cabeça entalhada dita à Prosa que a deixe interpenetrá-la...Um abraço cordifraterno, da velha amiga:Clevane pessoa de A.Lopes

2:51 AM  
Anonymous Anônimo said...

Lázaro:Desculpe a afoita pardica que enviou sem reler.Repito,corrigidas as "clevanices de digitação":
Sorrio ao ler-te, pois me encontro inteira nesse dizer literário qual um chale de luar.Lembro a gente simples, da roça, que classifica alimentos em fracos e "de sustança".Também eu busco autores que digam, saibam dizer,e com sustança.Assim , teu texto oferecido qual mesa posta de variados acepipes ,ao ar livre, em baixo de uma árvores, com crianças na algazarra e no movimentos, os gatos a brincar por perto, os pardais afoitos, atrevidos, a bicar de um tudo...Eu,que desde os Anos Sessenta, sou de guardar tuas palavras na Memória, te reencontro agora;a mesma alma- fênix que aromatizada renova-se de si mesma.As tuas palavras, inovadas.No alto do totem de tua Poesia, a cabeça entalhada dita à Prosa que a deixe interpenetrá-la...Um abraço cordifraterno, da velha amiga:Clevane pessoa de A.Lopes

2:51 AM

2:55 AM  

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