GRÃOS DE PÓLEN E PICLES DIETÉTICOS
A imagem sedutoramente irresistível da água mais nova que vem dessedentar-me no anseio mais antigo. E na ilusão de que a sede está perto da água, é que alinho uma anotação de leitura do romance de Marcel Proust, “À Sombra das Raparigas em Flor” (trad. de Mário Quintana): “A linha deliciosa e inacabada, este era o ponto de partida em torno da mulher como o espectro da beleza projetada na treva. A voz dos lábios dela: como as folhagens que a água desloca ao fugir. É no jardim secreto do sono que as flores obscuras exalam seus múltiplos extratos. Aquelas brunidas valvas de rosado nácar. Cada um de seus vestidos era como a projeção de uma das particularidades de sua alma. O amor e o sofrimento, como a embriaguês, tem o poder de diferenciar as coisas para nós.. A verdadeira beleza é tão peculiar, tão nova que não a reconhecemos como beleza. O mar gótico de ondas imobilizadas em vitral. Nada convida tanto aproximar-se de uma criatura como aquilo que dela nos separa”. Proust, Proust, quando o leio sinto como que estivesse escrevendo pensativamente. Ái de mim, quem me dera! Outros autores consideram que a mulher tem a espora mais acicatante que conhecemos, e mesmo assim pode levar-nos, se quiser, ao mais doce paraíso, que ainda não conhecemos. Salman Rushchie, o blasfemo escritor muçulmano, é irreverente também em suas confidências literárias ao revelar as intimidades sexuais com a prima Gail no livro “O Mágico de Oz”, repetindo as palavras dela no momento da penetração: “Em casa, garoto! Em casa, neném...: Você entrou em casa!” Deus é inefável e intangivel relativamente à linguagem humana, assim Jean Claude Bernardet conclui analisando a chamada teologia negativa, a partir de um texto anônimo do séc. V, do qual ele pinça os dizeres: “A Treva” (ou seja, Deus) mais luminosa que o Silêncio, brilha de luz mais esplendorosa no seio da mais negra escuridão...”. Para Cantardo Calligaris, a vagina é um pênis ao avesso (uma luva revirada), virado para dentro, contendo, ainda, um pênis complementar, miniaturizado, o clitóris. Juro que não tinha bebido nem um gole de pinga, juro. Mas depois de apreciar pela janela dos fundos a chuva grossa caindo sobre as árvores do quintal, fui à janela da frente e constatei que a chuva que se despejava sobre as árvores da rua era bem outra, muito mais fina, menos torrencial. Voltei à janela dos fundos e lá fiquei, demoradamente. A tirania de um lado, a subserviência de outro, isso parece sempre aconteceu em todas as partes do mundo. E acontece até no reino dos seres injustamente chamados de irracionais: os cães e os gatos domésticos adulam e readulam seus donos que os castigam, que os castigam, mas que também os alimentam. É a tal contradição nas próprias referências? Se muitos políticos de Brasília estão enfeiando e desvalorizando a política, em compensação muitos escritores da capital federal (Danilo Gomes, Rosângela Vieira Rocha, Ronaldo Cagiano, Napoleão Valadares, Paulo Siqueira, Alaor Barbosa, principalmente) estão embelezando e valorizando a literatura. Suponho que muitos desses bons escritores são funcionários públicos desencantados com a disfunção do maquinismo do poder público e, na medida do possível, tiram de vez em quando uma licença poética e fazem uma necessária limpeza psíquica para continuarem a viver na roda (rodeio?) dos performáticos roedores da nação. Ninguém é de ferro para agüentar diuturnamente o cenário da desmoralização, não é mesmo? Aí, esses talentosos escritores regressam, mentalmente, a outros tempos e outros lugares, ficam munidos materialmente dos elementos criativos para contornarem as defasagens politiqueiras, agora mesmo tão desnudadas pelo crivo de tantos inquéritos vexatórios sobre uma infame organização que está mais para a criminalidade do que para a governabilidade. Triste Brasil.
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