quarta-feira, março 21, 2007

ACENDE A LUZ - Conto

“Com efeito, comerás do trabalho de tuas mãos, bem-aventurado serás, e cumulado de bens. Sua esposa será como uma vide fecunda, no interior de tua casa; teus filhos, como rebentos de oliveiras, ao redor de tua mesa”. (Salmo 128-1 a 3, versão segundo os textos originais, pelo padre Matos Soares, tipografia Alberto de Oliveira, Porto, Portugal, 1955). Josepha Maria de Jesus, acende o fogo e apaga a luz. Nascida em 1809 e falecida em 1867, filha de Manuel de Souza Pinto e de Anna Joaquina de Souza, possível sobrinha-neta de Tiradentes, natural do Distrito de Cláudio da Villa de São José Del- Rei, nas cercanias da Villa de São Bento do Tamanduá. Casada no Distrito do Desterro em 02/07/1825 com o Comandante da Guarda Nacional Bernardo José de Oliveira Barreto, que lutou ao lado dos insurgentes na revolução Liberal de 1842. Mãe de Antônio, Francisca, Bernardo, José, Bernarda, Joaquim, João, Manuel, Pedro, Rosalina e Mariano, avó de centenas e milhares de netos, bisnetos, trinetos e tetranetos, rebentos consangüíneos, saudáveis e bonitos, herdeiros de sua lonjura participante, de suas lembranças persistentes. Quão gratificante é para o escrevinhador bancar o coruja e gabar o toco, os galhos, as folhas, as flores e os frutos! Ela morava em si mesma, abençoando e felicitando a uns e outros, espelhando-se nos descendentes e no marido, que jamais teve filhos fora de casa (teve uma Mecia em estado de solteiro, e uma Maria em estado de viúvo), sempre ajuizado e atencioso, a rodar o meio-mundo regional na administração dos bens públicos e particulares com a precisão matemática do rigor da lei então em voga. Ela queimava as calorias da boa vida que a sorte lhe destinara participando das lidas dos casarões da fazenda e do arraial, aprendendo e ensinando as boas regras da convivência familiar e social. Uma santa mulher da argúcia e dos trejeitos congênitos. As santas de nossa incondicional devoção também são assim, não? Sei muito bem que há mais coisas para viver do que para contar. Às vezes gosto de ir além de mim mesmo, além dos ares e das superfícies, chegar às paragens do ânimo sereno onde vivem os melhores dias sem que nada os envenenem, como diria Dino Buzzatti. E lá uma vez ou outra um parente antigo entra nos meus pensamentos, acionam meus impulsos e forçam-me a cometer atos às vezes falhos que depois revelam-se alheios à minha naturalidade. Às vezes penso que o sonho de mitificar a realidade já passou e que agora temos que comer a poeira do deserto, beber a água que o gato nem lambe. Mas uma voz antiga e feminina (de minha mãe, da minha avó, de minha bisavó, da minha trisavô : ou todas, neste ponto da questão é a mesma pessoa?) vem dizer que o mundo está morrendo e nascendo quase ao mesmo tempo e que quem quiser pegar alguma parte do belo espetáculo, que não durma no ponto. Só quando o passado se tornar por demais remoto é que estaremos realmente perdidos e seremos outros seres, então mortos e insepultos, sem nem mesmo um destino para nele espelhar de novo e nele encostar novamente. Sei muito bem que este não é o meu caso. Mas às vezes penso que ignoramos da vida o que as mulheres não dizem (o que elas dizem, ah disso estamos cansados de saber), pois elas são as fontes da vida. Onde elas chegam, sentam ou deitam, algo ali que é visto por elas é ao mesmo tempo tocado por elas – e assim fica tocando como um violão-fantasma enfeitado de flores sempre vivas.É mais fácil um dragão aparecer na janela do quarto do que Deus desaparecer da porta da sala, isso ela dizia aos filhos, do alto e no fundo das noites escuras da centenária Fazenda da Laje. Ela que, no meio em que vivia, desmentia a opinião do Conde de Assumar, que repelia a cerviz dura e rebelde do povo mineiro. Um povo ensimesmado no amor próprio exorbitante, se assim posso dizer. Lembro-me dela nos caminhos da imaginação, como se fosse aqui e agora. Ainda hoje está comigo nos vínculos intemporais da afeição incondicional, com seus cabelos alvoraçados e brilhantes. De hereditária inconfidência, ela às vezes passeava nas terras da família, cavalgando pelas lajes e cachoeirinhas e pastos de gabirobas das vizinhanças flexíveis (que se aproximavam e distanciavam de acordo com as vontades dela). Às vezes defrontava uma enigmática mulher vestida de preto – e ela se perguntava se a viúva perdera alguma coisa na região ou se estava perdida naqueles rincões e precisava ser urgentemente encontrada. Por que o tatu adentra o desconhecido e a coruja fica gongunando no moirão da porteira com tamanha tristura? Por que às vezes chorava sem querer? O marido corria o risco de ser preso por desobediência civil e militar? E então, o que será da Fazenda, do Casarão do arraial, das plantações de cana e de café, das dezenas de escravos ali tratados como gente? O que será dos filhos e dos netos? Seus pais livraram-se do anátema da Inconfidência, antes de falecerem, mas que foram humilhados e ofendidos, isso, moralmente, foram. E os filhos, flores já aprumadas, não iriam frutificar? Alguns errariam o caminho certo da vida certa neste mundo tão mal formulado, tão mal povoado? Temos que pagar os erros dos outros? Assim ela às vezes parecia deslizar como uma cobra coral nas veredas do quintal. Algo mais doce do que o favo de mel da abelha jataí? Ali, de vez em quando, a expressão de seu rosto ganhava a expressão do olhar de um sol enluarado? Suas palavras às crianças da casa boiavam no ar como flores despreendidas das hastes, como diria Afonso Arinos, tempos depois. A coração adocicada do rosto, a linda clareza do colo...: não era à toa que o marido deixava os amigos do arraial falando sozinhos, e picava a mula no caminho de casa. Passado tanto tempo, fico pensando nela, ainda tão viva em meu pai, em mim, em meus filhos. Como ela poderia imaginar ou mesmo sonhar que em cento e tantos anos depois o mundo seria outro, a vida tão diferente, mesmo aqui nesta tão distanciada região do antigo sertão do tamanduá? O avião, a nave espacial, o satélite artificial, a confraternização online os anjos metálicos cegos no bem e no mal desabalados nas linhas aéreas sem acostamentos a industria cultural do cinema a comunicação de massa da televisão sem o embargo da gagueira e da catarata com o adendo de falar quem pode e calar quem consente o imperialismo norteamericano sempre ouriçado o sexo explícito escancarado a peste aidética camuflada a poluição ambiental estimulada o desequilíbrio ecológico abusivo as mamonas rebentam no pé, ao sol esturricante a droga narcótica enriquecendo os insanos, desarticulando a sociedade a locupletação da imoralidade social a instituição da impunidade o culto da violência na rivalidade das audiências a piedade virou folha morta que o vento transporta para outros planetas a bigodeira sem vergonha dos pedófilos a desintegração do átomo no fim da linha o crime organizado das máfias de todos os matizes o fundamentalismo irrascível a onça dentuça de olhos parados na desavença os xopíngues entulhados de quinquilharias supérfluas o som da zoeira, a zoeira do som tanta libido desperdiçada tanto terrorismo globalizado os olhos maiores que os buchos dos arrivistas a clonagem sem cara e sem coroa. Ah, ela bem que dizia que quem namora abre os olhos e as janelas, que quem ama abre as portas e a alma ela que cuidava de tudo e de todos ainda tinha tempo para contar e cantar o pirulito que bate e bate o pirulito que já bateu quem gosta de mim é ela quem gosta dela sou eu ela, Josepha Maria de Jesus apaga o fogo e acende a luz de meus olhos indormidos.