domingo, março 04, 2007

IRONIA E HUMOR NA LITERATURA SEGUNDO LÉLIA PARREIRA DUARTE II

“A ironia romântica surge no final do século XVIII”, ela diz na pág. 141, como reação à vitória da burguesia, portadora do progresso e do pragmatismo. Aí o artista vê-se na encruzilhada: ou coloca-se a favor da nova ordem social, “contribuindo para a sua legitimação”, ou fica contra, “criticando-a, o que poderia significar seu suicídio em termos de reconhecimento estético”, impasse que ainda perdura e que abre o jogo das delicadas opções: se aderir, é engolido pelo sistema e perde as asas da imaginação; se contestar, é repelido pelo mesmo sistema e passa a voar com as asas machucadas. Uma forma de convivência mais ou menos eqüidistante é o recurso da utilização de uma forma de ação implícita das metáforas da ironia e do humorismo. A famosa ironia de Machado de Assis é esmiuçada por Lélia na filtragem de seus contos, nos quais não faltam os jogos de enganos e de espelhos, os movimentos de canto de boca, as perspectivas das chalaças, os ditos de duplos sentidos, as muitas piscadelas marotas do autor”. Através de tais artifícios, ele, Machado, desencandeia sua própria capacidade de enganar”, tornando crível (através de truques) a existência do inexistente (o recital musical sem um único som), e a instauração de um fabuloso acervo de ingredientes apropriados muito depois pelo surrealismo, como “a linguagem fônica dos insetos”, o pregão das mentiras vestidas de verdades, “Os narizes inchados substituídos por graciosos narizes metafísicos”. E assim, usando os condimentos do ilusionismo, o ser humano tenta e consegue “preencher o seu irremediável vazio”. E é assim que ela conclui que “um dos grandes recursos da literatura de todos os tempos é a ironia”. Quando fala de Guimarães Rosa , ela abre as páginas da obra dele como se fossem novas janelas. O leitor que julgava conhecer a obra rosiana, sente a existência de outros níveis, outras facetas, outras belezas na linguagem que se enreda no que conta, para se tornar, ela também, um conto envoltório, adjacente, como o prodígio enflorando o cerne de uma árvore. Entendemos, como leitor, que a obra do grande escritor nunca pode ser considerada “lida”, mas sim que numa estante pendente está sempre no estágio do “lendo”, tantas são as indicações que acompanham as dúvidas e afirmações. Textos que podem e devem ser lidos “como traduções ou como exercícios de metalinguagem que contam o que contar”, como ela afirma na página 286. “A oscilação de sentido ou a alternância entre pólos opostos” - é um dos recursos expressionais na ficcionalidade rosiana para revelar que o sertão, além da peculiaridade geográfica, é também um verdadeiro microcosmo, e o sertanejo é um ser múltiplo e contraditório, e não apenas um tipo humano comum, mostrando assim a impossibilidade de formulação de conceitos definitivos”, já que a tensão entre pólos opostos é permanente e irresolvível”. De tal modo que a vivência do personagem contamina o leitor e assim ambos se envolvem no encantamento do “clima de leveza que leva a aceitar a loucura ou a terceira margem, com sua falta de certezas e sua ilogicidade”. O tempo e o espaço, como elementos intercambiáveis (sob o ponto de vista de que cada um vive dentro do outro), interagem na dimensão rosiana da fusão história-geografia, de tal maneira que a autora fica muito à vontade ao associar os dizeres filosóficos da mais refinada cultura alemã (de Nietzche: “as verdades são ilusões, das quais se esqueceu que o são, metáforas que se tornaram gastas e sem força sensível, moedas que perderam sua efígie e agora só entram em consideração como metal, não mais como moedas”) aos dos sertanejos mineireiros, considerados em bloco pela pretensa sabedoria acadêmica como caipiras, capiaus, bobões. A literatura, segundo Almansi, “começa quando a palavra deixa de ser garantia de um pacto histórico ou de um acontecimento e prospera graças à malignidade e ao mal-entendido”. Em suma: o mal-entendido é o que pressupõe a literatura: o que não sabemos explicar aos outros e tentamos explicar a nós mesmos. Nas estórias de Rosa as vistas são de vários lados, já que “é impossível a visão simultânea, direta e total de todos os aspectos(...): há sempre algo elidido, subentendido ou apenas insinuado”. Lélia vai fundo em todos os planos da disquisição: sobe, desce e aplaina tanto na verticalidade como na horizontalidade do mundo rosiano, detendo-se em cada minúcia (dos contos e seus personagens), para melhormente alcançar a amplidão (o romance dos contos reunidos e o próprio grande sertão, do qual ele confessa que só viu e sentiu algumas de suas veredas). “A aceitação do incompreensível e do imponderável”, ela esclarece, é “que traz paz ao personagem Sorôco e aos que os seguem, entrando com ele naquela terceira margem”. Certamente a melhor parte da fortuna crítica de Guimarães Rosa é a que consta de três seminários internacionais (num dos quais tive a felicidade de participar) realizados na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, a PUC-Minas: “o primeiro em 1998, com 260 Comunicações de pesquisas e participantes de dez diferentes países; o segundo, em 2001, com 400 Pesquisas apresentadas e participantes vindos de 13 países; o terceiro com 446 Comunicações, de participantes vindos de 15 países”. O leitor pode facilmente imaginar como a bibliografia sobre a obra rosiana foi ampliada e a fortuna crítica enriquecida. Por modéstia, ela não assume o papel que desempenhou nesse trabalho monumental, que todos reconhecem, aplaudindo. O trabalho crítico de Lélia Parreira Duarte assemelha-se ao do Autor, que também se aproxima do papel de seus personagens. O nivelamento fica bem sugerido na análise que ela faz do conto “Cara-de-bronze”, onde o personagem, à certa altura, aguarda o amigo que foi buscar a poesia para “um interminável relato a fazer”. No pé da página (330), ela revela o que o leitor já esperava: “se a poesia não tem finalidade, não terá também um fim, um fechamento ou uma conclusão”. E assim outra revelação se evidencia, endereçando os poetas de todos os tempos e lugares a uma terra sempre virgem e infinita, que é ela mesma, a poesia, sempre aguardando os que acedem ao convite de assumir o possessivo e inesgotável amor à vida.