domingo, fevereiro 04, 2007

FRAGMENTO DE UM CONTO

Joãozinho e Maria, do livro “A Cabeça de Ouro do Profeta”. 

Ele: As mulheres, as mulheres! De algumas gostamos das partes baixas do corpo, as formas e os volumes; de outras amamos o sorriso e o olhar, os sons no silêncio perfumado. Ela: Se gostasse de minhas partes altas não estaria deitado de cabeça para baixo.... Ele: Aqui estou mais perto do pasto e da roça, a parte mais concreta da doçura. Ai no alto é a parte mais dúbia e abstrata, que varia de acordo com a temperatura ambiental. Ela : Temperatura? Você mede a minha pressão arterial? Ele: Sim, da quentura e da frieza. Lembra quando fica braba comigo? Aqui embaixo não tem raivosia, só acolhimento e brandura e formosura. Ela: Não entendo o que diz. Sou a mesma de corpo inteiro, a língua é que extrapola. Dizem que é a chibata do corpo alheio. Mas ela tem outro gosto também, ou não? Ele: Se tem! E boas palavras, se está boa nas outras partes do corpo.... Ela: Você é um cretino de mão cheia. Ele: Mão cheia quando espalmo assim (abarca com a dextra os seios e outras partes do corpo desnudo dela). Ela: Cretinice é o que não lhe falta. Ele: (Divagando) O mimetismo do corpo de minha amada não é apenas epidérmico, mas também anímico. Assim posso transigir de uma a muitas das amadas, sem sair do lugar. E assim posso encontrar a outra na mesma. Agora, por exemplo, você é toda rosa carnal, enxuta e comível, assim deitada em seus louvores e ao mesmo tempo levantada em seus labores. Ontem você estava magra e morena, os seios sumidos, os lábios ressecados, o beijos ficavam lá dentro, não sopitavam, mantinham o desejo nas cercanias. Amanhã, quem sabe, uma outra virá de longe, mais fornida nos cantos e recantos, os lábios menos beijadores e mais beijados, uma luz suave fora das palavras ardentes, os dedos dos pés e das mãos esculpindo outras flores em tua pele. Ela (afogueada): então é assim que pensa de mim? Enquanto me esforço para desdobrar, você fica aí fingindo fidelidade, mas está é gozando com outras mulheres. Bonito pra sua cara, viu?! É mesmo assim que me encara? E sabe o que penso de você, sem declarar? Que você é sempre o mesmo nos calcanhares e nas orelhas, às vezes cansativo, quase sempre desmotivado e desarrazoado. Sempre errado, mesmo sem dizer uma palavra. Ah, preciso pegar o trem e buscar outros ares e outras pessoas. Ele: Concordo com tudo que disse, menos “pegar o trem”. Pois estou bem aqui, com todos os amantes que você desejar. É só mentalizar, ou seja, fantasiar. Sou muitos, sou trezentos e tantos, como o Mário de Andrade dizia. Inteiramente às suas ordens.