sexta-feira, fevereiro 16, 2007

AS MAZELAS E OS SORTILÉGIOS - Conto

Ia à pé aos tropeços e baques pelas mazelas da paisagem, atravessando pinguelas, valos, procurando (achando e perdendo) os caminhos desfeitos que levam aos estranhos lugares de um enganoso destino, - isso pela terceira ou quarta vez. Não sei como, o sonho (era nele que eu andava ao léu) pode ter certa lógica e tantos extravios. Sei que a direção é do objetivo – e assim animado pulava mais um rego de enxurrada, abaixava os arames farpados de uma cerca para esgueirar-me, vendo e sabendo que estava certo, que não era a primeira vez a passar naquele campo deformado em sarandis, capinzal e buraqueira, pois que ainda a agora reconhecia aquela ladeira que leva à Tapera do falecido tio Pedro Novato, de onde alcanço outro estradão maltratado, que some de vista e que me leva depressa a uma outra miragem: agora sim confirmo a localização da enorme barragem das águas lodosas, bem à minha direita, do outro lado do esbarrancado. Visão tremenda, medonha. Se usasse chapéu até que o tiraria da cabeça, faria o “pelo sinal da santa cruz” e quem sabe, se tivesse uma grama perto, até ajoelhasse para rezar. Estarrecido, inclino-me à esquerda, seguindo as mazelas da paisagem, passando pelos trapos de pessoas, pelos garranchos de casas caindo aos pedaços. E mais uma vez ocorre-me a repetida lembrança de já ter passado por todos esses lugares. Distanciando daquela imensidão de águas vermelhas, peguei a reta no prolongamento frontal até chegar à localização da grande indústria daquelas bibocas, de área construída repleta do corre-corre dos operários bem arrumados, todos absurdamente desconhecidos; do frigir das ferramentas acionadas em guindastes monumentais, escadas rolantes vertiginosas, trilhos e mais trilhos automáticos, uns rasteiros, outros aéreos. Onde mais uma vez sou atendido pela mesma moça das outras vezes, completamente desconhecida por mim na vida real. Ah, como já deixei entender, o conto que conto é a repetitividade de um mesmo sonho vivido pela quarta vez nos últimos anos de minha inglória vida. A moça tinha algum interesse por minha pessoa? Seria bonita se a reparasse melhormente? Lembrava-me vagamente de outra, de recolhido amor, não? Não. Ela também estava sendo inventada pelas artes e ofícios do sonho mais real que alguém possa ter, no qual os fatos e casos são normais, apesar de não acontecidos, e os personagens são normais, apesar de absolutamente desconhecidos. E os lugares pelos quais trançava, desavisado, condoído, curioso? Tudo inventado pelo sonho que se repetia em mim como o replai de um aparelho eletrônico. Consciente da realidade onírica (tinha certeza que estava inteiramente dentro de um sonho), que me afetava, cheguei a comparar a luminosidade crepuscular dos verões anteriores à daquele dia, - mas sentindo a incapacidade dos sentidos de captar, discernir e explicar a extravagância de tanta algaravia, mesmo depois de acordado, longe da cama, bebendo da mesma água que lavava o rosto para recobrar a lucidez. O que sei é que fica sempre um desvio que foge de nossos pés, isso sem falar nas sombras e luzes invisíveis que nos rodeiam no percurso dos sortilégios. Coçando a cabeça na impertinência, segui as mazelas da paisagem, novamente espezinhando trilhos recobertos de benzinhos e cipós, locas e pedregulhos, vendo no horizonte que se afastava um esbarrancado vermelho sob o montão de nuvens negras, riscadas de mudos relâmpagos, anunciando uma tempestade que não me amedrontava. Sabia que, como das outras vezes, ela ameaçava mas não vinha, distanciava enquanto eu seguia, e só aproximava se eu fizesse meia-volta para retroceder. Tudo muito aceitável por Deus e todo mundo, - assim eu pensava, mesmo estando sem Deus e todo o mundo. O que ainda agora me implica é a capacidade desse sonho de inventar tantas feições e visões, tantas coisas diferentes umas das outras, tudo assim instantaneamente. Será que ele próprio, desinformado, forjava com os sobejos de outros sonhos (de outras pessoas, talvez) todos aqueles seres e aquelas coisas, especialmente para configurar uma paisagem, na qual eu devia, incansavelmente, perambular? A eternidade não volta, mas a humanidade sim, volta. Ainda agora, da porteira de um curral fui à tronqueira de uma palhada, aí virei o corpo, retrocedendo e cheguei à mesma porteira do curral de uma tapera. E no interim duas horas se passaram, que não voltam mais. Depois, aproximando-me de um bambual, percebo que o silêncio é preenchido de mil ressonâncias cósmicas, infinitamente encabuladoras, que ocupam o vazio atmosférico deixando nas beiradas as pausas descansativas para a recepção e a emissão de novas potencialidades sonoras, reservando a parte mais íntima para expandir o turbilhão esférico só audível na concentrada atenção de alguém que, na solidão, se dispõe a ouvir o incessante redemoinho gritantemente uniforme, deixando o espaço para a locação marginal do silêncio afável e beneplácito, sempre pronto a dar um tempo pra novas locuções e audições, como a necessária “deixa” das falas teatrais. É assim que às vezes penso que não passo de um espírito (alma penada?) vagando pelas taperas, machucando-me nos estrepes, espinhos e atoleiros físicos. Aí, nesse caso, o sangue e a dor são do corpo e não do espírito, que se ausenta momentaneamente. À s vezes chego a duvidar se o ser humano é uma vítima ou um algoz, na ordem das coisas. No reino geral dos animais terrestres, ele dá a entender que é um estranho no ninho das propriedades autônomas de cada espécie? Por que demora tanto contratar-se naturalmente uma amizade de convivência duradoura entre todos os seres vivos? Às vezes fico bobo de ver como a mocidade desregrada emputece a velhice comedida. Sei lá. Não tenho nada a ver com isso. Que as lágrimas sejam suores do espírito. O que não posso é bobear no meio de transes tão arriscados. À certa altura do percurso, já inquieto nas dimensões tão volúveis das peripécias, atinei-me no pormenor do retorno ao arraial onde realmente moro, antes que me endoidasse de vez naqueles escaninhos oníricos. O sol já abaixava, urgia, pois, providenciar um alvitre. Nisso vi a casinha na beira do caminho, na porta da qual um homem deitado apoiava a cabeça no colo da mulher sentada no degrau da escadinha, enquanto o filhozinho deles brincava nos arredores. Aproximei-me para indagar como fazer para voltar ao arraial. O homem recomendou-me ler Elias em Reis I 17-8-23, que fala sobre “quando foi fechado o céu por três anos e seis meses, advindo então a dilatada fome sobre toda a terra. E a nenhuma das viúvas foi mandado Elias, senão a uma viúva de Sarepta, na Sidônia”. Você acaso é algum parente do Elias do Genésio? A mulher, mudando de assunto, perguntou-me.O menino, com o gargarejo de adulto, perguntou-me se o sobrenatural é só química e se tanto a eletricidade como a fantasmagoria são ou não uma simples ilusão de ótica. Estou ficando doido? Pensei, ao ouvir tanta besteira. O medo é uma criancice? A coragem é uma embromação? Com quantos enigmas se faz uma pessoa no sonho de outra pessoa? Ah, os astrofísicos e os metafísicos de fraldas abonam e desabonam novas crendices na infinita coleção dos percalços das (in)certezas (i)moderadas Recomecei o percurso do regresso, envolvido nas disposições arrevesadas de tantos parâmetros sufocados nos muros caídos, nos valos desbeiçados, o chão abaixando e suspendendo suas trilhas sob a relva, os bambus lascados nos pomares desfeitos, o monte de cores gotejando miasmas em cima dos córregos.... Assim mesmo eu avançava nos perigos e dificuldades, alheio às severas reprimendas dos obstáculos, movido pela intenção de que agora não mais podia retroceder nem parar, mesmo sabendo que seguir podia ser ao mesmo tempo voltar. O que não podia, no entanto, era cair em si de mim mesmo no insuportável atordoamento de acordar banhado de suor. O que afinal de contas aconteceu.