quinta-feira, março 22, 2007

TEMPO DE PURO JARDIM - Conto

Em determinado período de minha juventude (dos 16 aos 20 anos), morei em Belo Horizonte, trabalhando de dia e estudando de noite. Nas férias de fim de ano, tirava duas ou três semanas de folga no emprego (era comerciário) e ia matar as saudades da terra natal, Bom Despacho, onde os parentes e amigos recebiam-me de braços abertos. Minha mãe morria de medo dos descaminhos oferecidos na grande cidade, que eu poderia trilhar. Ela e minha (única) irmã Vanicia, perguntavam sempre nas cartas, se eu freqüentava as missas dos domingos e dias santos de guarda, se era benquisto no emprego, nos estudos e na roda dos amigos e, além disso, queriam sempre saber se eu já tinha arrumado namorada, como ela era, se eu gostava dela, se ela era bonita e simpática. As duas certamente acreditavam nos melhores antídotos dos descaminhos da juventude: a religiosidade e o namoro sério. Naquele final de um dos anos da década de 60,eu estava particularmente triste porque tinha mudado de emprego e em vez de melhorar de vida, tinha piorado. Os novos ares da viagem, no entanto, e as boas fisionomias dos parentes e amigos, logo fizeram-me esquecer o contratempo. Minha irmã estava muito alegre, porque ia apresentar-me à moça chamada Célia, de Abadia de Pitangui que, segundo a irmã, não era mais bonita porque não tinha onde caber mais beleza nela. - É minha colega no Curso de Aperfeiçoamento de Florestal e veio passar o fim de semana na casa de Olga, outra colega do nosso Curso. A desculpa é que veio conhecer a cidade, mas na verdade ela veio conhecer você: isso sim, tenho certeza. Não vai me decepcionar não, viu? Minha irmã era uma flor de pessoa. No gosto dela não haveria desagrado neste mundo, nem mesmo para qualquer um dos filhos das unhas que só vivem para causarem sofrimentos. Pessoas assim agradáveis Deus leva cedo pro céu.e ela foi cedo, mas noutra estória. Ainda hoje vivo simultaneamente em três dimensões: o passado a entrar no futuro, como os ponteiros adiantados de um relógio amalucado, e o presente que também vai e volta no rol das experiências desencontradas. A luz do espírito é diferente da luz da inteligência – ambas iluminam coisas diferentes, com as intensidades que variam de pessoa para pessoa. A irmã a entreter-me, naqueles dias, nos guisados e berlindas, a falar das garotas que cresceram, reapresentando-me umas e outras: qual delas podia me cativar? A mãe a costurar uma porção de camisas bonitas, a fazer quitandas, pamonhas, mingau de milho verde, os doces disso e daquilo, os mais requintados. O que mais podia desejar naqueles dias? Preciso ser jovem de verdade, cair em mim de uma vez por todas – assim me auto-criticava, de vez em quando. As casas em paralelo e as ruas da cidade, nas quais as conversas das pessoas participam de longas estórias. E eu? Estou sempre em muitos lugares ao mesmo tempo, a divagar devagar. Por que a imaginária câmera não se aproxima do rosto de Débora Kerr? O rosto de qualquer pessoa, em qualquer lugar é o centro de gravidade do cenário.... Assim fico imaginando o rosto da tal de Célia, que minha irmã cita com superlativa ênfase? As semelhanças com os de Ida Lupino, Olívia de Havilland, Verônica Lake..., seriam meras coincidêancias? - Em quê pensa tanto?, minha mãe me surpreende com a pergunta, ao pilhar-me cabeceando na espreguiçadeira do alpendre. O encontro da apresentação foi na Praça, perto do clube social e do cinema: iríamos ao baile ou ver o filme “Antes do Dilúvio”, com Marina Vlady? De repente ela chegou, sem me olhar diretamente, como se não tivesse pressa e fosse tranqüila de natureza. “Como ela é de rosto?”, eu tinha perguntado à Vanilia, que adiou a resposta naquele dia, dizendo: “Espere para ver. Garanto que não vai se decepcionar, quando vê-la de perto como se fosse uma dessas estrelas de cinema que você tanto idolatra.” vendo-a agora, olhei para a irmã, confirmando no olhar a certeza de acreditar que ela nunca faltava com a verdade, desde a mais tenra idade. Um facho de luz pousava, aureolava, o espaço onde ela estava, dos pés à cabeça. A pele fina como o espírito: aquelas veias de luz no rosto, uma espécie de fogo verde para acender o súbito encantamento. Um tempo de puro jardim pousa ali na pessoa dela – foi assim pensando que eu mesmo respondi à pergunta antes feita à irmã. Mal acreditava no que via ali na praça, então ainda mais linda da Matriz de Nossa Senhora do Bom Despacho. A formosura nela parecia uma nova espécie de felicidade, que extrapolava, contaminava toda a adjacência avistada. Isso mesmo, pensei. Ela podia dar o que tinha, que ainda sobrava muito: a beleza falava para dentro, enquanto olhava para fora? As fontes da divindade, que jorravam do interior da Igreja, mesmo ali na suspensa praça noturna: o parapeito circular dos canteiros do jardim Uma ereção mental tão forte assim que dura toda vida, merece consumir toda a vida! A consistência da fantasia tem sumo poético: eu estava então a sonhar, prestes a realizar? “Nutres o ardor com a própria energia, causando fome onde existe fartura”: por que agora os versos de Shakespeare? “Saibas ler o mundo que o amor escreve assim fica o amor a ouvir com os olhos”. Até hoje sinto que o mel da vida em minha boca vem quando pronuncio o nome dela: Célia, Tempo de Puro Jardim. Naquele instante quem mais sentia os efeitos do impacto: o cérebro ou o coração? E ela, como será que me via, assim aos poucos, naquele começo de noite diáfana? Guardei algumas de suas palavras, que guardo como perolas inestimáveis, que não mostro a ninguém, tão particulares as considero. Fico até propenso a dizer que o amor é mais forte do que a própria poesia. Será mesmo? O fogo apaga na lenha que se consome, mas a luz continua a brilhar nas estrelas. Guardei as palavras daqueles momentos. Não eram do dicionário. Nunca mais as encontrei em outros momentos. Não eram de nossa vil realidade! A noite estava apenas no começo dos roseirais e das campânulas. Ela conversava com minha irmã. Dentro dela existia algo que ninguém sabia, que ficava para depois? Por que Deus me fez assim tão observador, tão minucioso nos afins e nos efeitos? Se ela der mais um passo – eu pensava, angustiado -, vai enevoar-se ainda mais no mistério ainda maior.... Isso eu tinha que evitar, antes que fosse tarde. Uma nova poesia começava ali na minha vida? O que vai ser de nós depois, dentro do cinema, lado a lado e nos meus braços no baile? Ela falava com minha irmã: as duas pareciam duas irmãs. Mas aí chegou o Desmancha-Prazear do Aprígio, o caçoísta imperdoável. Ele tinha vivido em Belo Horizonte, onde se deu mal, depois de encher a paciência dos conterrâneos. Ele sempre foi uma incongruência, um cu pra conferir, como se diz. Não deixava passar nada em branco. Se via um cachorro, batia o pé no chão, a dizer: “Vai embora daqui, seu titiu, não tem vergonha de andar pelado no meio dos outros, cachorro?!” Se alguém o esnobasse e contasse uma piada melhor que a dele, ele replicava com facécias e gozações desagradáveis. Um desembestado que nunca se manca, ostentava a facilidade de conquistar mulheres em todos os lugares, esmerando-se no vestir, no calçar, no pentear e no perfurmar. Estava agora com um carro pintado de novo, dando seu notório espetáculo exibicionista pela cidade, para baixo e para cima, sem parar. Será que ele veio melar o meu romance com a moça, que ainda bem não começou? Chegou cumprimentando, obviamente interessado nas moças, apesar de ser casado e amigado com muitas mulheres. Falava comigo de olho na Célia, que logo entendeu seus ares cafagestistas. Quando percebeu que as moças já ensaiavam alguns risinhos irônicos, ele voltou a atenção para cima de mim e assim desatento diante da lábia dele, acabei caindo no ardiloso contratempo. Depois do manjado preâmbulo da conversa mole, ele passou a insistir que eu desse um pulo com ele na casa onde morava ali perto, a fim de mostrar um trombone de vara, novinho em folha, que acabara de comprar. Não era na verdade uma conversa pra boi dormir? “Amanhã irei”, eu lhe dizia. Ele insistia, insistia. “Agora estou com elas, não vê, Aprígio?” E aí sabem o que ele teve o desplante de fazer? Dirigiu-se às moças e pediu licença para que eu o acompanhasse por alguns minutos, para tratar de um assunto urgente. Elas concordaram, é claro, pois queriam se verem livres dele. E lá fui eu, feito bobo, a seguir o descarado. Ele estava um tanto bêbado? Desconfiei das rateadas de seu carro e de seu falatório inesgotável. O que afinal queria mesmo exibir agora? Que estava bem de vida e mais ajuizado? Será que não sabia que eu sabia de suas trapaças, que devia a deus e a todo mundo na cidade, que era casado no Arraial do Riacho, amasiado no da Boa Viagem e tinhas outras donas sobressalentes na Estiva e na Bemposta. Como fui cair na besteira de acompanhar um cara assim tão enrolado paquerador? Inconha danada. A ruindade no mundo tem seus filhotes em toda parte. Como fui bobo, como sou bobo de cair assim na esparrela! E foi assim que o pior aconteceu: o carro derrapou na descida da rua, subiu na calçada, atropelou uma porção de gente e quase matou um menino de oito anos de idade, só parando contra um muro de pedra do outro lado da rua. “Você está ferido?”, ele perguntou. Ele estava intacto e lampeiro, não sofreu uma escoriação sequer. Eu tinha metido a cabeça no para-brisa, ferindo-me a testa, e tendo que passar a noite no hospital, para observações. E nunca mais vi aquela moça, que até que podia ter dado outro rumo à minha vida. A minha vida até hoje peregrina e intermitente.