sábado, maio 26, 2007

AS ORQUÍDEAS NUNCA MORREM

É uma leitura emocionante, a desse livro de Yara Ferreira Etto (Mazza Edições, Belo Horizonte, 2007). Vivendo placidamente num belo e espaçoso sítio ecologicamente correto e poeticamente inspirador, a autora evoca na lembrança do resenhista aquelas romancistas inglesas de tempos já remotos, só faltando debruçar-se sobre as páginas em branco e escrever, também, uma coleção de belos e legíveis romances. Se pode suscitar alheias emoções (intensas e prolongadas) em relatos verídicos, como os desse livro, poderá fazê-lo, também, em relatos fictícios. Assim mesmo: reviver o que passou, como se não tivesse passado, mesmo que sejam frações de pó numa urna de bronze, como diz o poeta Tennyson na epígrafe do Capítulo II. No trabalho dela ressaltam a feliz e audaz conjunção da afetuosa e caseira faina familiar, e do grave e agudo exercício medicinal e da poderosa e fluente argúcia da expressão de todas essas partes e de muitas outras distribuídas pela vida dela no caleidoscópio dos dias passados, presentes e futuros. Argúcia intelectual e equilíbrio emocional: tudo vale a pena quando a alma não é pequena, como lá diz o Fernando Pessoa. O ânimo otimista acima das vicissitudes deprimentes: como consegue tanta força luminosa, mesmo sem, confessadamente, acreditar em Deus (em Deus como no-lo ensinam os atuais catequistas)? Por obra e efeito de um dom que lhe foi outorgado a ele por um Deus ainda não de todo esclarecido a nós, que professamos uma religiosidade nebulosa? A palavra escritor define a plêiade de romancistas, contistas, poetas, cronistas, articulistas, ensaístas etc. Refere-se a quem consegue exprimir uma idéia e/ou uma imagem com palavras em verso ou em prosa. Exprimir, no caso, é revelar, instaurar através do vocabulário um ser e/ou um estar, algo que pulsa e surge, nitidamente (ou mesmo nebulosamente) nos sentidos do leitor atencioso. Então, por essas virtudes é que persisto na propensão dela de suscitar idéias e emoções escrevendo, o que não só credencia como exige dela uma resposta através da escritura de contos, romances e poemas que, embutidos nela aspiram, exigem exteriorização. “É difícil viver depois que a gente morrer”, esta frase de uma doente mental, que dá título ao Cap. XIII, assentaria no título de um romance capitoso que um bom surrealista (o melhor é o cineasta Bunnuel) ou mesmo Kafka ou Murilo Rubião escrevessem, para o gáudio de nós, inveterados leitores dos bons autores. A sadia convicção de que é dona de si mesma, que bem sabe o que é, onde está e o que quer, é o que transparece na página 95, onde afirma, com outras palavras (mais literárias) que existir é bom algumas vezes, e em outras é muito doloroso: aproveite o que é bom, respeite o outro, e procure, se pode, interferir para melhorar, mas não faça isso em busca de recompensas, que elas não existem nem antes nem depois da morte. O poder ajudar já é, em si, a recompensa: e não há mérito nem demérito nisso, como na omissão. Há, sim, as mentes perversas: mas como não haverá recompensa para os bons, não pode haver castigo para os maus – e, assim, tanto o mal como o bem são, apenas, uma questão social. Bem pensado e dito, heim? Com Deus tudo é suportável, mas..., sem ele, indaga, pesarosa, a cabeleireira. A mãe (da autora) que faleceu aos 99 anos, não queria que ninguém a visse morta – tinha medo de acordar, sufocada, depois de dada como falecida. Exigiu da filha que uma substância mortal fosse injetada em suas veias , para assim dirimir qualquer dúvida. A especialidade do marido (médico de renome em Divinópolis) era cuidar dos indigentes. Ele, vítima de um derrame cerebral, sofreu a paralisia de algumas partes do corpo durante 23 anos. E não foi por pena que ela o amou durante todo o tempo, ela diz. Desenganado da cura de uma doença, a pessoa descarrega nas outras seu desespero e revolta (ela constata, ao longo de seu desvelo de esposa-quase-mãe e de enfermeira-muito-médica) – e é aí que as más qualidades da pessoa desenganada, até então ocultas, vem à tona, e as boas não se manifestam mais, infelizmente. O que essa pessoa mais pensa e sente é que foi invadida por um alienígena que a devora, algo inexplicável e inescapável (assim ela diz na página 108). A especialidade do marido eram os indigentes. E a dela? Cuidar da família (pai, mãe, marido, irmã, filhos, netos) diuturnamente – e também de todos os seus semelhantes, na medida do tempo e do espaço restante. E o cuidar de si mesma? Se cumpria o que julgava ser suas obrigações, ela considera, já estava cuidando de si mesma, de boa vontade, sem lamúrias. Uma verdadeira filha de Deus, de um Deus um tanto diferente do que é ensinado no catecismo (indefinível pelas contradições e, por isso, um tanto ou quanto socialmente incognoscível?).