sábado, maio 12, 2007

NA CAPADÓCIA

À filha Ana Paula e ao genro Guilherme. 

A natureza escavou e burilou os maciços rochosos e a população aproveitou o começo da instauração de uma arte ínsita e cinzelou o solo vulcânico, para toda espécie de serventia. O resultado é a maravilha que impressiona o visitante pelo arranjo formal da comunhão de dois esforços, o da natureza e o da mão humana. Na antiguidade a região foi ocupada por populações diversificadas (em incontáveis cidades, hoje soterradas): os hititas, os frígios, os lídios, os macedônios, os romanos e os cristãos. As cidades subterrâneas, construídas sob o tufo vulcânico, são hoje designadas como a oitava maravilha do mundo. Não apresentam decorações, o que dificulta o estudo dos historiadores. Foram escavadas no tufo e atingem até 8 a 9 andares de profundidade, com seus labirintos e túneis, chaminés de ventilação, salas, corredores, casas com oficinas de produção vinícula, dormitórios, refeitórios, igrejas. Mas ainda não se sabe onde foi depositada a terra retirada ao longo das construções – nem o tempo levado de tão articulado empreendimento. Os dias pretéritos e os do porvir esplendem e fenecem ao belo prazer de nossa vontade inconstante e autônoma: vão às gabirobas da infância rural, aos apocalipses da senilidade planetária, com a mesma negligência e argúcia inequívocas no meio da noite e em qualquer parte do dia por assim dizer paranóico? Pouco antes da morte terrena, o súbito vulcão varreu os arredores da Capadócia, erigiu os arcanos de suas atuais cidades subterrâneas. Muito depois da vida assim alquebrada, o território se refez nos tufos resultantes. Mas então: cadê as frutas e os cereais, as bênçãos do céu chuvoso, iluminado e iluminador? Agora aqui só jaz a terra das areias ardentes e não mais a das coivaras acariciantes? Mas então: aos poucos a terra vai rebrotar as sumidas sementes, sob o rompante musical dos grilos do amanhecer de uma nova era? Aqui o Imperador Constantino e sua mãe Helena teriam encontrado a cruz do sacrifício cristão, e também o afresco de São Onofre (que nos sessenta anos de vida no deserto teria até mesmo mudado de sexo). Aqui na abside da Igreja da Maçã vislumbra-se nos titubeios da algaravia: os três hebreus na fornalha, a filha de Jairo a hospitalidade de Hibrahim a Natividade a trindade Jesus-Maria-José o chamamento dos discípulos, o Arcanjo São Miguel a Comunhão e a Transfiguração a descida do túmulo aos limbos a ressurreição de Lázaro a ascensão de Jesus, a glória do pai, do filho e do espírito santo. A aura da espiritualidade.