sexta-feira, maio 18, 2007

DOCE MEMÓRIA (*)

Dizem que o Aleijadinho tinha três escravos em casa, que eram, afinal de contas, os modelos dos anjos de suas obras. Todos temos, mais modestamente, um, dois, três anjos na escorreita, na estreita glória de viver, não é mesmo? Uma lua na felicidade, uma escuridão na desventura, ia pensando Joamir, tarde da noite, na volta do arraial para a casa do arrebalde da Água Fria. Sou, afinal, um pornógrafo platônico, que desabotoa a braguilha, mas não sai da moita? No curso das folganças é que se intrometem os revezes, as desditas? Assim vou acabar como um narcisista às avessas, a cuspir na própria imagem? Ele lembrava muito bem. Antes de desfrutar e amargar o amor de Mirafélia, senti uns intercalados pendores por outras moças, entre as quais uma professorinha de Rei João, que fazia um estágio na escola do Desterro. Que rumo ela terá levado? Será que lembra bem de mim como bem me lembro dela? Ah mas foi o que foi e que nunca mais será. De uma outra professora ((anômala, anônima), lembro-me de quando voltávamos de um pagode na Estiva: no retorno pela estrada propícia, sob a penumbra de infinitas estrelas e o sombreado de um velho luar complacente, ah! Não posso dizer, ou posso? Éramos muitos pares caminhando na estrada da volta ao arraial, todos propositalmente isolados na certa distância propícia aos afagos e suspiros, ah, como beijávamos!: nos lábios, na maçã do rosto, no nariz, no pescoço, onde mais?, no onde mais da interdição implícita,? ora essa, é claro que éramos todos decentes, socialmente. Voltávamos a pé, sem pressa, todos os pares enlaçados, beijando a cada sombra de uma árvore ou de um barranco, no silêncio da noite aprofundada. E quem, no meio das estrelas e das matas marginais aplaudia ou reprovava? Os ávidos corações nas bocas e nas mãos, a sexualidade escondida arrebitava a tanga? Escurecia a trilha dos carros de bois? Abreviava qualquer adiamento? Era ainda um sonho ou a realidade é que virava sonho a cada curva do noturno cenário de nosso refestelado caminhar? E quando chegássemos ao arraial, cada abraço desenlaçando, o que de afortunado ou de pesar levaríamos para casa? Ninguém queria chegar: estávamos onde queríamos. E aquele estado de poema nunca vai acabar, nunca vai acabar na mais doce das memórias.

(*) Fragmento do romance “Monólogo e Pranto.