segunda-feira, abril 23, 2007

INTERFACES DO OLHAR

Espontâneas considerações oriundas de uma primeira leitura do livro supracitado, da poeta portuguesa Ana Hatherly, livro portador dos subtítulos: “Uma Antologia Crítica” e “Uma Antologia Poética”. Roma Editora, Lisboa, Portugal, setembro de 2004. 

Sendo ao longo do tempo mais leitor do que escritor, e assim mais propenso ao arquivamento íntimo das apreensões do que ao esbanjamento instantâneo do ressurto que então aflora, sinto-me feliz em reconhecer e declarar que a poesia de Ana Hatherly espouca e brilha em todas as páginas do livro, de forma que as duas antologias (a crítica dos outros livros dela e a poética dela) coadunam-se na mesma linguagem intercambiável dos toques e comunhões da mesma poesia escrita ou desenhada nos versos da prosa , na prosa dos versos e no revestimento pictórico, melodioso, no turbilhão dos conceitos e das imagens. Assim é até correto afirmar que a crítica do poema só será completa se feita através de um texto que seja também e a seu modo um outro poema? Louvores, pois, ao conjunto de autores (uma orquestra afinada na execução de uma sinfonia?): não é todo dia que se vê assim fundir a justiça na relevância, tão expansivamente. Um dos autores, Pedro Sena-Lino (1) diz logo que os textos dela não são apenas poemas, são poéticas, e que também os Manifestos e Ensaios são absolutamente poemas. Não há dissociação estilística nem queda de tensão no comportamento literário ao longo de dezenas de livros, desenhos, escritos, pinturas, resenhas, entrevistas, narrações oníricas, rosários de tisanas, um fabuloso conjunto de signos multifacetados. Textos imbuídos de secretas intenções nos fragmentos de palavras, sons e sentidos, resultando, no dizer de Pedro, em ossos que podem ser pintados, projetados, associados livremente e exigindo a premente participação do leitor que, assim, torna-se uma espécie de co-autor. Com a mesma leveza do que é belo e puro de alma, ela vai dizendo coisas como as que agora cito de memória: havia um jardim ali porque havia um interesse humano por muitas outras coisas que se interpenetravam na argamassa da construção sempre renovável, que se nos apresenta. Com a palavra poética na porta da mente, na ponta da língua e dos dedos, ela reconstrói com a cinza dos dias que roem os ossos “o que o mundo não diz? o que o mundo não é” – e que só o poeta (no caso, ela) pode dizer (2). No texto de Rogério Barbosa da Silva (3), “Itinerário e Labirintos da Poesia de Ana Hatherly”, enfatiza-se a imagem do labiríntico nos percursos de sua poética: “nas folhas que caem, poucas, amarelas e discretas, não são já o princípio do regresso à terra funda?” Um vai-e-vem no itinerário dos labirintos, no qual “a palavra a faz derivar para as artes visuais, e o seu trabalho de pintura a faz derivar para a literatura, promovendo um encontro das artes (...), um trabalho arqueológico que funciona como um suplemento do trabalho poético”. A meditação sobre a existência, ela afirma na entrevista com Fernando J. B. Aquino (2), é outra das vertentes de seu trabalho, reveladas desde a publicação de seus primeiros livros, uma constante instintiva e consciente em sua ininterrupta atividade criativa. Movida pela lúcida intenção de “cingir o obscuro coração das coisas”, ao enfrentar o “irredutível enigma de tudo”, ela escreve, não porque compreendeu, mas para compreender, aprender. O antigo, querido e notório lirismo português palpita e brilha na poesia dela com os melhores laivos do romantismo e do barroco, não apenas associados aos encantos da paisagem, mas, como ela diz, “mais no amor..., no êxtase desesperado do amor”, traço particular que esquenta e ilumina o insuperável lirismo humano da tradição camoniana. Um bonito caso de fidelidade ao estilo, conscientemente admitido desde o primeiro livro, e fidelidade também ao espírito de luta, ao amor-próprio e à linha de seus fazeres díspares (verbais, gráficos visuais, ensaismo, traduções, cinema, palestras, pedagogia, editoria, administração cultural...) em harmonia no contexto do viver e do criar, sempre munida do “imaginário em ebulição” (conforme a frase perfeita de Maria João Fernandes (4) de sua personalidade serena e ciclópica ao mesmo tempo. Outra beleza de seu trabalho é a sólida unidade que apresenta um conjunto sem estorvo e sem desarranjo no alinhamento propulsor dos conceitos e das imagens, das formas e dos conteúdos, tudo como que previamente articulado, apesar da genérica sujeição de um mundo exterior invasivo na “interioridade oscilante” das pessoas nas intempéries impostas pelo que talvez seja o oposto da poesia, a política socialmente predominante. Seus textos visuais, com o emprego ou não de palavras, são poemas espetaculares, uma técnica ou jogo combinatório (como acentua a citada Maria João Fernandes), que lhe permite, à feição dos antigos anagramas, “realizar a variedade na uniformidade”. São textos exclusivos e intercalados aos verbais, sem atritar o equilíbrio, sem dissonância fonética ou pictórica, um recurso criativo-artesanal prontamente formulado, com o sensível ganho para as artes gráficas, que se tornam, assim, mais afeitas e irmanadas. De tal maneira que um desenho em forma de poema passar a ser uma coisa e outra, não só para quem faz mas também para quem recebe e absorve. E é assim que a “subversão da linearidade lógica do discurso” prorrompe e se instala naturalmente na página, sugerindo sinteticamente profusas afirmações num disponível leque de significações. O itinerário poético dela, como observa Rogério Barbosa da Silva, é repleto de labirintos, através dos quais ela caminha apoiando-se no jogo dialético dos amansados paradoxos que fluem das brenhas e das cavidades para as escrituras e leituras, sem as dores da arenga e imbuídas da aragem, do enlevo e das novas suscitações estéticas. Assim é que descortina o horizonte pragmático a ser palmilhado em prosa e verso sem derrapar e sem atalhar, passando (e vincando) de livro em livro sem recuar, sem dar passadas maiores que as pernas, cumprindo a auto-determinação de seguir a sinuosa linha criativa entre abismos práticos e teóricos, com tanta felicidade. Se é feliz no ponto em que se encontra é porque soube encaminhar os inícios e manejar os meios em sã consciência, valendo-se dos elos existenciais da sensibilidade e da intelectualidade, municiados pela nórdica sensualidade portuguesa de seus modos de pensar e de agir. Fica bem claro que ela sabe jogar no incerto com tanta certeza, com tanta felicidade. Sabemos que os conteúdos existem exteriormente longe e perto das pessoas, que os utilizam ou não, de conformidade com a vontade e a capacidade de cada uma. Já as formas (que às vezes confundem-se com os conteúdos, e ambos podem até trocar de papéis de interpretação como num teatro de marionetes) são desideratos particulares, membranas plasmáticas, dispositivos renováveis nas teclas das opções, que funcionam como veículos, logotipos, a marca identificadora do comportamento expressional. Isoladamente é uma espécie de desígnio inato ou uma escolha no processo de iniciação e de aperfeiçoamento do ofício de viver. Em Ana Hatherly a fusão dos dois dispositivos chega a resultar numa espécie de traço de caráter (uma herança genética?), uma disponibilidade espontânea, através da qual ela consegue dizer e não dizer as coisas, sem a dor do esforço físico-mental. Como se de repente todas as flores viessem morar em seu jardim e todas as palavras viessem cantar em seu eleito vocabulário. A naturalidade dentro (e parceira) da complexidade na obra enfim legível e instigante. “A memória é invisível por isso tentamos dar-lhe corpo” -é o que ela diz no livro “A Idade da escrita”, de 1998. A presença invisível é uma espécie de proximidade do longíncuo, uma insatisfação constante que se refaz continuamente, chegando às vezes a quase satisfazer-se. Mas o certo é que a benquerência está sempre acima da presença e da ausência, acima do prazer e do desgosto. Mas essa presença invisível, ou ausência visível, na mente e nas mãos de Ana, é o adjutório para escolher e acionar “um tipo de experimentação mais individualizada”, o que ela faz habilmente, escoimando “os excessos de subjetividade” em sua metodologia peculiar e disciplinada e estóica, isenta das tentações adornantes que poderiam levá-la à prescrição de “receitas narcísicas”, como ela mesma diz na página 108. Segura de si e munida de tirocínio alertado, ela vai no caminho das sucessivas descobertas, sabendo que cada uma aponta o esconderijo da outra, de ponta a ponta, numa “demanda infinita” e é assim “que se instala o reino da utopia, que não pode sumir do mapa da imaginação e da memória”, uma diretriz de vanguarda sem polêmica, quase consensual para instaurar a consonância e a compatibilidade do discursivo e o visual como partes confluentes da mesma escritabilidade. A embaraçosa presença de uma impossível ausência impede-a de oferecer o que tem e obriga-a a oferecer o que não tem, uma vez que não conseguiria casar uma ausência com outra ausência. E no impasse temático e vivencial, ela recorre à prática das exaustivas e fecundas TISANAS, já inscritas definitivamente em seu laureado repertório. “Na quentura da in-fusão das ervas desprende a essência do aroma” – e aí uma nova modalidade literária estala em regozijo e adequação: a Tisana de muitas páginas e muitos anos, aqui sintetizada na de número 45, que dá título ao artigo de Silfriede Engelmayer (5): “Tudo que é profundo se revela à superfície”. Nelas (Tisanas) o escritor José Martins Garcia (6) destaca alguns padrões característicos, entre os quais “o relacionamento desconcertante em que as imagens se sucedem com premeditada inverossimilança”. Nelas os aforismos são impecáveis, burilados: “Em todos os gestos úteis há sempre algo de terrível”; “o amor é impossível mesmo quando possível”; “ninguém consegue saciar o desejo, que ele é o cerne de tudo”. “Não me esqueço”, ela afirma a certa altura, sempre cheia de vida. “O mistério do desaparecimento é o que nos enche de palavras: criamos porque nos falta alguma coisa”. E ela assim continua dizendo: “A importância vital do erotismo, que é uma das forças vitais da criação. Sem erotismo não há criação”. “O concretismo é redutor. Não existe só uma vanguarda, mas vanguardas sucessivas ao longo do tempo”. Navegar é preciso, reciclar também é, eu me atrevo a acrescentar. “Não venho da droga nem do alheiamento do real, venho só de dentro, um outro dentro diferente da família surrealista”. E quem é o poeta que não é poeta? Ela sabe e revela: “é o que se atira para o nada” e que assim o faz numa “queda livre controlada, não suicida, mas correndo os riscos” e peripécias, colhendo os achados , muitos deles até então inconcebíveis. “Nunca se andará para a frente sem derrubar algo”, ela acrescenta. Integrante do Movimento PO-Ex (Poesia experimental Portuguesa), alinhado como um todo no esforço de “instauração de uma nova ordem ético-estética,... politicamente de esquerda..., denunciando todas as formas de repressão e de imobilismo”, iniciado na década de 60 em escala mundial e que transigiu vinte anos depois para uma”definição de territórios individuais de experimentação”, quando então ela optou pela pesquisa das “origens da poesia visual derivada da poesia figurada, que na Europa remonta aos gregos alexandrinos”. Maria João Fernandes (7) constata na obra dela que a explicitação do discurso teórico está sempre a carecer do texto-imagem – e é justamente esse trabalho pujante e meticuloso que ela vem desempenhando desde o início de sua profícua atividade, como lá diz o texto do terceiro parágrafo da página 70: “Sobre o branco, as teias noturnas, labirínticas da imagem, véus translúcidos e opacos, demasiadamente lúcidos, lúdicos, efêmeros, vertiginosos, onde se equilibram as lágrimas da terra, pássaros em miniaturas que de súbito voam sobre a página, letras em fuga dos jardins dos alfabetos da noite e do coração aprisionado. Há fugas subterrâneas e viagens no fundo dos oceanos da escrita do mundo. E que mundo é esse? Das letras, das grafias ilegíveis, das imagens sem paralelos no mundo visível, dos abismos dos paradoxos da razão e das nascentes antiqüíssimas dos sonhos”. 

 NOTAS (1) Pedro Sena-Lino, páginas 41 a 48. (2) Fernando J. B. Martinho, páginas 10 e138. (3) Rogério Barbosa da Silva, páginas 25 a 39. (4) Maria João Fernandes, páginas 69 a 85. (5) Elfriede Engelmayer , página 65. (6) José Martins Garcia, página 66. (7) Idem idem Nota 4, acima.