sábado, julho 07, 2007

LEITURAS CRIATIVAS

1 – “Diário de Um Sedutor”, de Sören Kierkegaard, tradução de Jean Melville, editora Martin Claret – São Paulo, SP, 2002. Página 40: “Ela escondia-se em si mesma, brotava de si mesma, como o vôo do abeto, mesmo preso ao solo. Um enigma que enigmaticamente possuía a própria solução”. Pág. 56: “O desdém que as jovens têm dos rapazes embaraçados é enganoso porque intimamente elas se sentem homenageadas diante do embaraço deles”. Pág. 60: “Tratando-a como a uma criança, eu sabia que a sua femininilidade podia erguer-se em toda sua pureza e encanto”. Pág. 70: “Amar apenas uma é pouco, amar todas é uma imprudência. Mas é preciso encerrar na alma todas as energias do amor e amar muitas. Nisso está o prazer, aí está o que é a vida”. Para o sedutor de Kierkegaard as amadas “nunca foram senão estímulos – e lançava-as para longe de si do mesmo modo que a árvore deixa desmoronar a folhagem: ela remoça enquanto suas folhas fenecem”. A arte de amar, segundo o filósofo, aqui revestido de um simples e ingênuo sedutor é: “só desejar o que possa ser dado livremente. É preciso aprender a natureza do amor, ser um esteta, um erótico, um sedutor inábil. O essencial é ser amado por quem amamos. Introduzir-se como um sonho na imaginação de uma jovem é uma arte, sair dela, uma obra prima. Mas esta depende daquela”. Mas quando o amor poderia armar-se dessa frialdade racional? pergunto, ensimesmado. “Um rubor leve e fugidio, como uma nuvem sobre os campos, passa por ela e se esvai lentamente. Será desejo, esperança, amor, tremor? A cor do coração é o vermelho”. 

2 – “A Consciência de Zeno”, de Ítalo Svevo, tradução de Ivo Barroso, Biblioteca Folha, São Paulo, SP, 2003. Logo na página 16 o personagem se abre feito uma mala de mascate: “Contei-lhe sobre o meu problema com as mulheres. Uma só não me bastava, nem mesmo muitas. Olhava-as com insolência pela necessidade de sentir-me brutal. No pensamento despias-as todas, deixando-as apenas de sapatos, tomava-as nos braços e só as soltava quando tinha certeza de conhecê-las bem”. A libido (depreende-se do que está nas páginas), como a sensualidade, está no ar, pode ser colhida através de uma mulher que desperta ou não desperta o desejo do homem, porque muitas vezes é o desejo do homem que cria numa mulher a mulher sensual, que pode ser assim para uns e não para outros homens. O autor deixa entender, nas entrelinhas, que a civilização está a dever à humanidade um sistema social mais flexível, no qual se pode aceitar e absorver as inevitáveis infidelidades sentimentais e sexuais, entre namorados, amantes e cônjuges. No passar das páginas ele diz, também, em outras palavras, que a terra gira e não entontece. E se não acabar com o amor dos cônjuges (que veio do namoro e do noivado), o casamento pode ser considerado feliz, o que, para ele, é uma raridade museológica. O personagem principal do romance queria na verdade, não apenas uma das três irmãs (Ada, Alberta, Augusta): ele queria todas as mulheres do mundo. O que talvez seja o querer de todos os homens do mundo, ele acrescenta. 

3 – “VENEZA de Vista e Ouvido”, de Lélia Coelho Frota, Coleção BeloBelo, Rio de Janeiro, 1986. Apresentação de Alexandre Eulálio, versão italiana (inclusa) de Luciana Stegagno Picchio, vinhetas de Maria Leontina. Uma edição em tiragem de 100 exemplares em tipos da família Times Roman, corpo 10 e obedecendo ao Projeto Gráfico de Cecília Jucá de Hollanda. Os exemplares numerados e assinados pela autora, em tiragem fora do comércio. Amavelmente a Autora dedicou-nos (a mim e à Inês, “afetuosamente”) o exemplar número 21, um privilégio que sem dúvida não merecíamos na data da publicação, nem agora, fruto da belíssima bondade dela (que era muito amiga de Drummond e, na época, Diretora da FUNARTE, que procurou-me quando esteve em Divinópolis para estudar a obra escultórica de GTO, o que resultou na escritura de um livro e na feitura de um filme, ambos antológicos como representação e interpretação da obra de nosso genial artista primitivo e criador, como ele próprio se definia. 20 anos depois, relendo o livro, repeti o sentimento de que já tinha visto e ouvido Veneza, antes de conhecê-la no ano passado, quando lá estive. Sim, quando lá estive, a sensação é de que já a tinha visto e ouvido em sua imaterialmente quase tangível.É nesse ponto que pode surgir uma possível tese de permanência da leitura criativa, que abala o leitor, fixando-se nele, inconscientemente. Ali estavam a mesma visibilidade, a mesma sonoridade. Ali estava, revendo o livro agora, o Tintoretto a projetar a Santa Maria Madalena no tempo e no lugar, e que Lélia, assim a representa: “Santa Maria Madalena irradiante, lê, sentada junto à grande árvore cantante. (...) Olha para onde , livro lido, a sua face redonda de mocinha?” É assim que tudo fica assim tão Veneza, tão eterno: “os céus descem a nosso olhar horizontal”: eis uma imagem literal captada em qualquer uma das paisagens venezianas. As pessoas e os pombos estão mais no céu, num céu que pousou ali com seus “anjos e cavalos sobre as nuvens”, no meio das procissões de Bellini, ao som da flauta de Mozart “a abrir caminho para o coração/ da floresta orquestra”. E aqui ou ali, em toda a visão circundante o que mais captamos na perfeição arquitetônica é o som dos instrumentos como “arcos propiciatórios, caixas brilhantes, ondeadas de cordas, metais reluzentes”, a beleza mais lídima, por assim dizer, celestial, “que faz descer da cúpula do nada o som, aterrissando nas arcadas”. Eis aí a Veneza dos verões de Vivaldi, dos trajetos e acordes de João Sebastião Bach. A Veneza que vislumbramos em 1986, no livro dela, a que vimos em 2006, ao vivo e a cores, e a que agora revemos, revivemos, com o coração na mão, ao “Abrir ou fechar os olhos para a música? No escuro é mais táctil. O seu rosto abstratíssimo. Com o Braille do invisível é doce mergulhar na sua água aérea”.