sábado, outubro 13, 2007

A VELHA A FIAR - Conto

Carradas de dias, meses e anos, a perder de vista, vividos nos mínimos momentos da vigília que vai e volta da lucidez ao sono, ela estava sempre ali, sentada no banco tosco do cerne de peroba, do lado de fora do casarão, à sombra das magnólias, a cabecear e fitar as nesgas da rua, a mascar o fumo de rolo temperado na cinza do borralho. Eternamente ali, muito perto da alma, ela, a vovó de poucos netos, aninhada na lenta fluência das horas, a pensar em versos não necessariamente rimados e metrificados, mas encadeados em blocos temáticos: o da pena que voa no ar da tarde, a pedra de contornos ásperos fixada no chão gramado, o lapso do tempo imóvel no campo visual que amarra as pessoas diante das casas desalinhadas de uma rua partilhada de animais – verdes gravetos de um feixe às vezes lúcido na proximidade e enfumaçado nas distâncias. A noção do tempo a escoar em si mesmo, quando cada dia começa num mesmo dia que nunca acaba. Assim ela vivia em versos livres do estilete gráfico: desenhava pensativamente, falava e musicava como as flores do cipó de são caetano no muro, como a fumaça que evolui do fogo nos cachos secos das sementes de magnólia. E quando a borboleta voava nos ramos da folhagem, ela acompanhava a forma do movimento e da cor ali transbordantes no ar emanado das portas e janelas abertas das casas e da igreja na praça. Uma linha não silogística de palavras cabais então vincava em sua fronte o gosto da apreensão do momento fugidio. Assim podia seguir o pensamento, sem se cansar e sem esgotar o objeto da pensação contínua, fluídica e indolor. Quando o cavaleiro passava trotando para os fundos dos horizontes, ela alongava o olhar até à barra do ir e do voltar e, afortunadamente, não mais duvidava se o que ia era realmente o que vinha. A perspectiva eliminava a dimensão. Nem todos os gatos são pardos em todas as noites. O deleite da perfeição passa rápido. A angustia, quando vem para ficar, despista os tentáculos, a luz aumenta o sofrimento – o mundo é flexível. Ela comia o fubá afogado (que ela chamava de “papo suado”) e mascava fumo no intervalo das outras minguadas refeições. Gostava de tutu de feijão bem amanteigado, macarrão goela de pato, carne de porco refritada. Comia lentamente, saboreando as virtudes das lembranças, prolongando a degustação dos versos pensamentais, e nada dizia de si aos outros. Colhia os instantes, um a um e às vezes apertava nas mãos uma porção deles. Queria saber o que estava a falar o sabiá na laranjeira do quintal de seu casarão. Devia saber de muitas outras coisas outras coisas, por nós ignoradas. Uma chuva na tarde estival? Um entendimento da linguagem dos pássaros, dos cães e dos gatos? Nunca corri das coisas, mas elas sempre correm de mim, ela dizia a si mesma, na assumida impotência da abnegação. O livro depois de lido, o amor depois de amado – assim ficamos o resto da vida a lembrar que não os temos mais nas mãos e nos olhos, como se uma parte do corpo tivesse separado do corpo e repousasse ali ou além, nos outros mil lugares de guardar que a lembrança tem. Era muito bela em sua velhice, talvez mais bela do que quando vivia na infância, na juventude e na maturidade. Cada ruga do rosto, cada linha da mão e cada veia dos braços e pernas, rotos ou lisos, estão carregados de sentimentos, que remetem ao rosário de imagens dormindo em cada pálpebra, em cada ruga, em cada suspiro. Ninguém sabia das longidões de seu passado. Dizia-se vagamente que nascera na região da mantiqueira, que era filha de mineradores e aparentadas com velhos fidalgos imperiais. Que fora encontrada e trazida pelos tropeiros da época numa estrada deserta, nas imediações da nascente de um rio caudaloso. Ninguém sabia de sua mocidade sertaneja, dos dias e noites porventura passados em outros arraiais, a juntar os fiapos de recordações, a captar os sinais da estranheza e do mistério das nuvens do céu e das relvas do chão, a peneirar palavras ditas e ouvidas – só ela sabia de si mesma e nunca disse nada a ninguém. Devia ter refestelado alguma vez nos idos da mocidade formosa e triste – que assim eram as senhorinhas remotas, tão cuidadosas no resguardo da intimidade, sempre na defensiva de possíveis atropelos e desafinações. Ela só veio do Japão Grande para o Arraial do Desterro a fim de ter seu único filho e perder o marido na repetitiva noite dos tempos, chuvosos, mais líricos que dramáticos. No tempo interminável de sua viuvez, ela lia e lia os livros das nuvens, das relvas, das pessoas passageiras: transpirava e recalcava imagens e conceitos, formas e conteúdos, e assim refazia constantemente seus humildes e estáticos modos de ser. O marido estava, ainda agora, voltando do outro mundo? O amor, ela pensa, tempera-se com sal e rapadura: a amizade apenas com a rapadura;o ódio apenas com o sal. Toda história começa na amizade,deriva no amor e depois descamba na paixão ou no ódio. Mas a paixão – ai ela se lembra de um certo tempo de sua vida – é a doença que regenera a saúde. Todo santo dia ela viajava nas velhas carruagens, em remotas estradas de chão, e às vezes no ar dos passarinhos e dos pirilampos, livres de atropelos e prenhes de sonhos. Quando faleceu, depois de perder o movimento, perdeu a cor, a forma e o calor, alterando bruscamente a serenidade mais intima que sempre manteve vida afora, sentada na porta do velho casarão senhorial. Um dos netos abriu seus olhos, tentando negligentemente desvendar a obscuridade silenciosa e enigmática de seu desterro existencial. O que julgou ver foi ainda mais obscuro: o tempo imóvel num caminho no fundo das alturas, onde o que entendemos por alma adquire a forma de rosa virginal e purificada dos vestígios do mal e do bem, com o cerne tenro abrindo caminhos felizes de outras dilatadas pétalas. Ela versificava pensativamente, enquanto cochilava à luz mimética da tarde. O que para outra pessoa podia ser tédio, melancolia, passividade, morbidez, ela captava e transmitia com os bons modos de outro interesse e de outra conotação. Os valores como o tempo e o espaço perdiam a linearidade e a logicidade, moviam-se subjetivamente, sem impactos e gritaria de neófitos. Seu olhar paciente e reiterativo lia no galho da roseira os bilhetes dos anjos do mês de maio – a própria tarde era um livro de páginas de lenta e constante viração. Tudo estava escrito em toda parte, bastava dar-se ao trabalho de ler. Um dia leu a própria sorte num dos retalhos de azul entre as nuvens brancas e viu que estava escrito: “Deus não esqueceu dela nem dentro nem fora de casa... ela vive uma vez ou outra assediada pela dor e pelo asco, mas é certo como o sol que está luzindo (!) que ela uma vez ou outra entra pelo céu afora e compartilha dos prazeres de todos que são da casa de Nosso Senhor”. Se olhava todo dia o mesmo galho de bilosca, ia guardando as pequenas mutações do colorido, da vivacidade, dos hospedeiros e também as inclinações dos galhos e os outros detalhes posicionais. Em uma senhora de quase cem anos de idade, ela sentia que afundara todos os caminhos do tempo: milhares de luas novas e velhas já cabiam em suas algibeiras de algodão. Mesmo assim ela mantinha (ah, disso sou testemunha) no rosto o ar noviço e belo de uma quase mocinha, pouco mais e pouco menos que uma menina antiga e futura e feliz, ontem, hoje e sempre. Uma mocinha de muitos e muitos anos que vieram dos horizontes – e que agora para os mesmos acolhedores horizontes está voltando.