ADÃO E EVA
Mantive durante muitos anos na década de 60 uma coluna no saudoso “Diário do Oeste” sob a rubrica de Mitologia Moderna, onde tentava interpretar sob o ponto de vista literário (incipiente como sempre, é claro) os fatos mais focalizados pela mídia da época. Na edição do dia 23 de outubro de 1966 publiquei o texto sobre as relações entre os sexos, tentando jogar um pouco de luz sobre a deplorável e histórica submissão do sexo feminino ao masculino, responsável por uma civilização machista repleta de acontecimentos negativos ao longo do tempo. Sei que da década de 60 aos dias de hoje aconteceu uma sensível melhoria nas relações, depois de tantos movimentos mundiais a favor da emancipação feminina. Mas a voz de mando masculina prevalece até hoje no primeiro plano da organização e da administração dos comportamentos humanos. O texto referido é o seguinte: ADÃO E EVA. Adão e Eva na terra, milhões de anos depois do Paraíso. Podemos transportar toda a questão para o plano da vida moderna, reportando-nos a Rainer Maria Rilke, que disse: “A felicidade amorosa só será possível quando o nome da mulher não mais suscitar no homem a idéia de oposição, de complementação e de limite, mas a de vida e existência, transformando o vexatório estado atual numa relação de ser humano para ser humano, não de macho para fêmea”. Tão leve e doce não será a realização dessa profecia, tão amável e feliz a coabitação iluminada por “um amor que consiste na mútua proteção, limitação e saudação de duas solidões”. Ele diz textualmente: “Talvez os sexos sejam mais aparentados do que se pensa e a grande renovação do mundo reside nisso: o homem e a mulher, libertados de todos os empecilhos, virão a procurar-se não mais como contraste, mas sim como irmãos e vizinhos; a juntar-se como homens para carregarem juntos, com simples e paciente gravidade, a sexualidade difícil que lhes foi imposta”. O próprio e recente caso de João Joana é ilustrativo: prova que a ausência de privilégio equivale à simultânea ausência de preconceito, e que o amor humano é bem mais saudável, excluindo-se o espectro do ciúme. Muitos pensam que o monstro de olhos verdes confirma o amor: oh, só se o amor fosse uma doença crônica em vias de se tornar aguda. Mas voltemos a Rilke: “O amor é bom porque é difícil. O amor de duas criaturas talvez seja a tarefa mais difícil que nos foi imposta, a maior e última prova, a obra para a qual todas as outras são apenas uma preparação. Por isso, pessoas jovens que ainda são estreantes em tudo, não sabem amar: têm que aprendê-lo”. De certa forma complementando a dissertação acima, publiquei logo na semana seguinte o poema “OS OLHOS DE CORPO E ALMA”, que releio agora, quatro décadas depois e que, sem revisar, acrescento ao texto acima, tal qual era a intenção, na primeira publicação, esquecida até mesmo pelo autor (mas que contém muito do que ele, o autor acredita como proposta de visão e de vivência). Com a devida licença, pois, o poema dividido nas partes ELE e ELA. Abaixo: ELE O poeta – será o lobo das cordilheiras sonhando com as guitarras da campina? O poema – uma noite, ou melhor, um pátio cercado de farpas: pasto de feras e diamantes? No joelho a lua e as formigas. Que fiz do coração e do sexo? Das outras direções do vento? Da moça de fita azul nos cabelos? E esmurro a noite do lado de fora da parede. E some a lua, onde eu roubava o fogo dos deuses. Como vou morrer nas unhas dessa noite, viver nas garras da poesia? ELA A memória que espera é a mesma servil que lembra e esquece as figuras de aversão. Desmancho o filete e acendo as luzes corporais da abstinência. A alma nos dedos entra e sai para os nórdicos países e amados litorais e províncias. A memória abraça o arvoredo, mas se arrepende e volta. Pergunta ao poeta se ele me entende. Pergunta ao herói se ele me ama.
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