domingo, junho 08, 2008

O VENDEIRO DO MORRO DA FONTE - Conto

Mandou comprar um bilhete lotérico fechado, da Federal, e guardou a sete chaves. Estava enfarado de sonhar com burro, cobra, elefante, avestruz. Quem sabe a má sorte advinha justamente dos sonhos instintivamente forçados? Fazia cinco anos que jogava, uma semana na Federal, outra na Mineira. A não ser algumas pedras caídas e terminações, da Sorte Grande do Bilhete Inteiro nem mesmo o cheiro de uma aproximação. Estava empobrecendo cada vez mais em vez de enriquecer. Já tinha vendido o pasto do Retiro e desfalcado sua casa de negócios, que era de ferragens e tecidos e passou a ser meramente de bebidas e mantimentos. Raros fregueses apareciam para vasculhar o que sobrou dos parafusos, das ferraduras e dos pregos – mas a presença semanal do cambista era infalível, sempre a brandir a tentação na penca de bilhetes da sorte grande. Belas e extensas fazendas verdejantes, manadas de vacas e bois na invernada, os cavalos de raça a galope nas pradarias, os amigos e conhecidos trazendo as boas palavras, os desconhecidos trazendo os conhecimentos e as bajulações. Os melhores sonhos do perdido, mas recuperável, coronelismo familiar dos antepassados, tudo de bom e do melhor estava agora no bilhete fechado, a correr naquela sexta-feira e a dar-se ao conhecimento publico no jornal de sábado, vindo no trem que passava na estação da via férrea, da capital mineira para a imensidão dos sertões. Tudo de bom e do melhor estava ali no bilhete fechado, cuidadosamente guardado na terceira gaveta da penteadeira de sua esposa Manuelina. Assim pensando e sonhando, foi dormir com os anjos auspiciosos do céu e da terra. Se ganhasse recompraria a Fazenda que foi do pai, lá no Sabarazinho, que hoje é da viúva do Juca Tavares, onde os filhos e os futuros genros poderiam extrair os mantimentos para o sustento de cada um dos lares. Como todos ainda são solteiros, com o beneplácito da sorte grande, não seria difícil arranjar bons casamentos para todos. E no pensamento ele alinhava os pares: a Lulu, a mais velha (mas não tão velha, coitada) com o Zezé do Atanázio Teixeira, que também não é muito velho nem muito novo, mas que está ficando para titio; o Alfeu com a professora Idalina, que tem o melhor salário do arraial; o Américo com a professora Deodora, o segundo melhor salário do arraial; o Jessé com a filha da poderosa Dona Sancha Amaral, da Estiva; a Creuza com o feitor da Rede Mineira de Viação, que deve ganhar muito bem, mensalmente; o Maurinho com a Marialva do Zé Juca, que não é rico nem pobre: é remediado, mas sua filha, nem se compara com as outras moças: é um pedaço de mau caminho; o Zuta com a zuretinha do falecido Miguel Arcanjo que, dizem, deixou um cofre estufado de notas de mil; o Otoniel preguiçoso e desanimado com a herdeira do Juvenildo, a solteirona Zilica; o Otávio com a filha da Bebiana, a Lutinha, pobrezinha, coitada, mas é o amor da vida de meu Otavinho; e por fim o caçula Antonico, com apenas 16 anos, com a Irenice do Genésio, também de 16 anos, quando ambos completarem 18 anos e criarem juízos. O dinheiro que sobrar da recompra da fazenda e da fazeção de casas para todos os filhos e filhas, vou empregar no sortimento da Venda (que levarei para a rua de cima) com tudo de bom e do melhor, para vender bem mais barato do que os outros vendeiros, de forma a ficar ao alcance dos pobres de toda a região. Dormiu e sonhou de acordo com todos seus melhores desejos. Todo pimpão e altaneiro era de novo o dono da Fazenda da Tapera, no Sabarazinho, que tinha pertencido ao seu avô e que seu pai tinha dissipado no jogo, na bebida e na mulherada. O curral agora novamente cheio de gado, os lavradores com as ferramentas, os vaqueiros com os laços e relhos e esporas. No meio da sonhação viu direitinho o professor Norberto escrever a giz no quadro negro uma numeração aritmética, com a caligrafia caprichada e legível. O primeiro número era o 2, seguido do 6. Aí o professor pigarreou, olhou os alunos e gravou lá no quadro o número 8; em seguida, com rapidez e deliberação, acrescentou os algarismos 5 e 3. De onde o nosso personagem estava sonhando, viu direitinho a totalidade da numeração: 26853. 26853, ele namorou cada unidade do conjunto, releu, memorizou e, não satisfeito, acordou de repente com os números na cabeça. Ato contínuo, ele tirou o lápis na gaveta da mezinha do quarto e copiou a numeração que ainda estava quente na memória. Sentado na cama, sentiu uma estranha frieza, seguida de um estranho calor. Ao longo do tempo em que arriscava a sorte, nunca tinha acontecido algo idêntico – era tudo num emaranhado de acasos e coincidências. Agora não. Havia algo de carta marcada, de destino desfolhado. Num átimo abriu a outra gaveta, tirou o envelope fechado do bilhete e, quase morto de espanto, confirmou o agrupamento numérico: 26853, sem tirar nem pôr um único algarismo. DESTA VEZ DEU! – Ele não se conteve, gritou e tornou a gritar, acordando a mulher e os filhos. FAÇA CAFÉ COM BOLOS FRITOS! – Ele ordenou à esposa, foi ao cômodo da Venda, pegou os maço de foguetes e começou a soltá-los da porta da cozinha e da porta da rua e, também andando do lado de fora, acordando os vizinhos com os estampidos acompanhados dos gritos de TIREI A SORTE GRANDE! TIREI A SORTE GRANDE! Aí a vizinhança assediou para confirmar e, em alvoroço, comemoraram e bebemoraram e comeram todo o estoque da cozinha e da venda pelo resto da noite afora. Quando o sol saiu, ele fez questão de ir em mutirão com os parentes e amigos à estação ferroviária, distante légua e meia, para comprar o jornal no trem das dez horas, para oficializar a conferência do bilhete sorteado. NÃO ABRA O JORNAL, ele disse aos filhos ansiosos. QUERO ABRIR! – Ele disse, com o maço de folhas nas mãos. Quando abriu e conferiu a relação dos prêmios, ficou verde e branco ao mesmo tempo, na plataforma da estação, a ver todo o verde e o branco estendendo-se ao longo da linha férrea e esparramando aos lados cobertos de capim e arvoredo dos cerrados e montes que, ao longe, fechavam a visão numa bolha de lágrimas. Com o bilhete BRANCO nas mãos, tudo mais descoloria, perto e longe de sua pessoa definitivamente decepcionada.